Filosofia

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terça-feira, 16 de abril de 2013

LIBERDADE

Djaci Pereira Leal1

Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que a explique,
e ninguém que não entenda!
Cecília Meirelles

O que é liberdade?
O que é ser livre?

Liberdade
A discussão em torno da liberdade tem se apresentado, historicamente,
como um problema para a humanidade. Recorremos aqui a
dois filósofos, distantes de nós em termos de tempo, mas não em relação
à discussão e preocupação que demonstraram em relação à liberdade.
O primeiro, Guilherme de Ockham, nascido na vila de Ockham,
condado de Surrey, próximo de Londres, entre 1280 e 1290. O segundo,
Etienne de La Boétie, nascido em Serlat, na França, em 1530. São
dois autores de épocas e lugares diferentes que discutem o mesmo
problema – a liberdade.
Vamos buscar o que acontecia no mundo Ocidental cristão naquele
momento que fez com que, Guilherme de Ockham, escrevesse a obra
Brevilóquio sobre o principado tirânico, com uma nítida preocupação
com a liberdade dos homens e mulheres que viviam naquele momento
histórico.
Com 30 anos de idade estava em Oxford estudando para obter o título
de Mestre em Teologia. Na época empenhou-se em comentar os
quatro livros das Sentenças, de Pedro Lombardo. Mas como afirma De
Boni nas notas introdutórias a tradução do Brevilóquio sobre o principado
tirânico: “(...) desde logo percebeu-se que o jovem bacharel setenciário
não era um simples comentador ou repetidor, mas um inovador
disposto a rever até mesmo posições de seu ilustre confrade Duns
Scotus, cuja doutrina campeava soberana em Oxford e Cambridge”.
(OCKHAM, 1988, p. 11) A partir de sua atitude questionadora e independente,
Guilherme de Ockham enfrentou problemas na sua formação e na divulgação
de seus trabalhos, que sofreram a censura da Igreja.
Guilherme de Ockham, pela sua proximidade com os franciscanos,
acabou por tomar partido nas disputas desses frades e a cúria pontifícia
acerca da pobreza.
Como destaca De Boni, neste debate, “(...) atingia-se diretamente a própria Igreja, cuja riqueza estava sendo questionada: uma Igreja rica estava longe da perfeição evangélica, e nem mesmo era a Igreja de Cristo”. (OCKHAM, 1988, p. 12) A participação de Ockham nessa polêmica gerou a necessidade de asilar-se, com outros frades franciscanos, junto a Luís da Baviera, que se encontrava em Pisa. A partir desse momento, Guilherme de Ockham passou e se ocupar mais de temas religiosospolíticos, referentes à pobreza e ao poder papal e poder imperial, deixando de lado os estudos de Teologia e de Metafísica. Guilherme de Ockham faleceu em abril de 1349 ou de 1350, não se sabe se reconciliado oficialmente com a Igreja, pois havia recebido a excomunhão papal em 1328. Sua morte é bem provável que tenha sido devido a Peste Negra.

Liberdade: a Contribuição
de Guilherme de Ockham

A vida de Guilherme de Ockham foi bastante agitada e marcada pela luta contra o autoritarismo. Observe que se ordenara padre em 1306, vai a Oxford estudar teologia e depara-se com o autoritarismo das idéias, pois não pôde discordar ou discutir as idéias dos grandes mestres da época, no caso, Pedro Lombardo e Duns Scotus, e em decorrência disso acabou por lutar contra o autoritarismo papal, e tomar o partido dos franciscanos nas discussões com o papa João XXII.
É preciso ressaltar que Guilherme de Ockham é um autor que deixa transparecer sua intensa luta pela liberdade e que ao longo de sua vida jamais permitiu que lha tirassem e, mais, buscou através de suas obras orientar para que os homens de sua época também não o permitissem. Não é por acaso que o pensamento de Guilherme de Ockham ficou relegado nos compêndios e seu nome citado entre os adversários da Igreja juntamente com outros nomes bem conhecidos, tais como, Pelágio, Ario, Berengário e Lutero. Para a ética a liberdade é o assunto por excelência.

A liberdade é muito importante para a ética, porque se ocupa do agir humano, da finalidade de nossa vida e existência; a ética sempre é a orientação para que possamos fazer nossas escolhas e fazê-las de forma acertada que é o que de fato vai nos garantir a felicidade. Para Ockham, a liberdade apresenta-se como a possibilidade que se tem de escolher entre o sim ou o não, de poder escolher entre o que me convém ou não e decidir e dar conta da decisão tomada ou de simplesmente deixar acontecer. E o que é mais impressionante é o fato de que a cada escolha que se faz determina e constrói nossa existência, aproximando- nos ou não da própria felicidade. É essa a ótica da discussão de Guilherme de Ockham no seu Beviláquio sobre o principado tirânico.
Aflijo-me com não menor angústia porque não procurais inquirir quão contrário à honra divina é este principado tirânico usurpado de vós iniquamente, embora seja tão perigoso à fé católica, tão oposto aos direitos e a liberdade que Deus e a natureza vos concederam; e o que é mais lamentável, recusais, confundis e julgais os que tencionam informar-vos da verdade
(OCKAHM, 1988, p. 27)

A preocupação de Guilherme de Ockham é com o fato de que o poder tirânico é contrário a liberdade a nós concedida por Deus e a natureza. Isto não é admitido como verdade por todos os filósofos, mas para o pensamento medieval do qual Guilherme de Ockham é um representante, mesmo que tenha sido rejeitado ao romper com algumas questões medievais, isso é uma verdade, pois o filósofo medieval aceita a verdade revelada como verdade e a fé como critério de conhecimento.
Guilherme de Ockham denuncia aqueles que em nome da religião passaram a usurpar a liberdade. E que tais usurpadores entendem, assim como ele, a liberdade como um dom de Deus da natureza.

Discussão em torno da Liberdade

Para entender um pouco o contexto do pensamento medieval, vale
a pena destacar o que nos apresenta De Boni:
Na ânsia de fundamentar filosoficamente a fé cristã, os teólogos do século
XIII haviam se valido da ética, do De Anima e da Metafísica aristotélicos.
Ockham [...] percebe que é necessário salvar a liberdade absoluta de Deus, cuja vontade se determina apenas por si mesma, e com isso abre espaço para o conhecimento da realidade humana como realidade contingente. Os pensadores do século XIII haviam construído uma teoria do conhecimento na qual, após explicar-se a abstração, pergunta-se: como é possível o conhecimento das coisas em sua singularidade? Ockham inverte a questão, [...] e constata: o que temos são coisas individuais, numericamente diferenciadas entre si: que valor tem então nosso conhecimento universal? Um mundo de indivíduos iguais entre si e sem intermediários é, porém, um mundo que se desprende totalmente das agonizantes hierarquias medievais; um mundo que encontra sua própria explicação dentro de si mesmo, sem receio de seus membros constituintes. (OCKHAM, 1988, p. 15-16)
Guilherme de Ockham pergunta-se, ao contrário dos pensadores do século XIII, pela validade do conhecimento universal enquanto aqueles perguntavam pelo conhecimento das coisas singulares. Ao fazer isso, chama a atenção para o mundo dos indivíduos. Guilherme de Ockham, situa a ação humana no indivíduo e suas escolhas reais e concretas, presentes não em verdade ou entes universais, mas nas coisas e situações particulares, singulares.
“Também a razão natural dita que, como o gênero humano deve viver pela arte e pela razão, como afirma o filósofo pagão, ninguém deve ignorar o que está obrigado a fazer através de suas faculdades humanas, não pelas animais”. (OCKHAM, 1988, p. 33) Guilherme de Ockham distingue faculdades humanas de faculdades animais, ou seja, o homem possui a capacidade de viver pela arte e pela razão, que no entendimento do filósofo seriam as faculdades humanas e é por elas que deve agir e não pelas faculdades animais, ou seja, seus instintos. Pressupõe-se assim que é de nossa própria natureza a capacidade de escolha exercida por meio da liberdade, entendida como presente de Deus e da natureza.
Após questionar o poder papal busca apresentar a liberdade fundando- a na lei evangélica, é o que pretende fazer ao dizer que:
A lei evangélica não é de maior, mas de menor servidão, se comparada com a mosaica, e por isso é chamada por Tiago de lei da liberdade (Tg 1,25).
A lei mosaica, devido ao peso da servidão, segundo sentença de São Pedro (At 15, 7s), não devia ser imposta aos fiéis. Diz ele, falando do jugo da lei de Moisés (At 15, 10): “Por que provocais agora a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais, nem nós pudemos suportar? Destas palavras conclui-se que um jugo tão pesado e de tamanha servidão, como foi a lei mosaica, não foi imposto aos cristãos. (OCKHAM 1988, p. 47-48) Guilherme de Ockham, assim como os demais filósofos medievais, faz uso da revelação cristã, portanto da Bíblia como verdade revelada.
É por isso que constantemente utiliza citações bíblicas para fundamentar suas teses. Na citação acima, Guilherme de Ockham está discutindo que com Moisés houve uma legislação que era opressiva e que Jesus veio justamente libertar o homem de tal jugo e servidão. Portanto, o poder papal não pode apresentar-se de forma alguma como um peso aos homens, já que Guilherme de Ockham afirma que a opressão do poder papal é lesiva não somente aos cristãos, mas a toda sociedade.
A lei de Cristo seria uma servidão de todo horrorosa, e muito maior que a da lei antiga, se o papa, por preceito e ordenação de Cristo, tivesse tal plenitude de poder que lhe fosse permitido por direito, tanto no temporal como no espiritual, sem exceção, tudo o que não se opõe à lei divina e ao direito natural. Se assim fosse, todos os cristãos, tanto os imperadores como os reis e seus súditos, seriam escravos do papa, no mais estrito sentido do termo, porque nunca houve nem haverá alguém que, de direito, tenha maior poder sobre qualquer homem do que aquele que sobre ele pode tudo o que não repugna ao direito natural e ao divino. (OCKHAM, 1988, p. 48-49)
Guilherme de Ockham tem a nítida preocupação de limitar o poder papal ao direito natural e divino. Isto ocorre porque no século XIV o poder da Igreja era imenso e havia a afirmação de que o poder papal estava acima do poder temporal, pelo fato de ser aquele de origem divina; procura desmontar a tese da superioridade do poder espiritual sobre o temporal, situando-os como poderes distintos e legítimos, e que ambos não podem ir além de seus limites, pois isto contraria o direito à liberdade dos homens, algo também pressuposto por Deus e pela natureza.
[...] Pela lei evangélica não só os cristãos não se tornam servos do papa, como também o papa não pode, pela plenitude do poder, onerar qualquer cristão, contra a vontade deste, sem culpa e sem causa, com cerimônias cultuais de tanto peso como o foram as da velha lei. E se o tentar fazer, tal fato não tem valor jurídico e, pelo direito divino, é nulo. (OCKHAM, 1988, p. 50)
Guilherme de Ockham coloca no seu devido lugar o poder papal, ou seja, pela lei evangélica somos livres e como tal devemos ser respeitados e qualquer tentativa de imposição de jugos contrários a mesma lei são nulos, sem valor e pesam na responsabilidade de quem o fizer, mesmo que seja o papa.
Hannah Arendt, (1906 – 1975) na obra Entre o passado e o futuro, ao discutir no capítulo, O que é liberdade? afirma:
O campo em que a liberdade sempre foi conhecido, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política.
E mesmo hoje em dia, quer saibamos ou não, devemos ter sempre em mente, ao falarmos do problema da liberdade, o problema da política e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação; pois ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular sem, implícita ou explicitamente, tocar em um problema da liberdade humana. A liberdade, além disso, não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade, que só raramente – em épocas de crise ou de revolução
– se torna o alvo direto da ação política, é na verdade o motivo porque os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d‘être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação (Arendt, 2003, p. 191-192)



Liberdade: Contribuição
de Etienne de La Boétie

A obra Discurso da servidão voluntária, de Etienne de La Boétie é de um momento histórico bastante distinto do de Guilherme de Ockham.
Enquanto Guilherme de Ockham discutia e apresentava idéias que serviam a destruição dos pilares da época em que vivia e acentuando determinadas mudanças que pareciam ser necessárias; por sua vez Etienne de La Boétie vivenciava as mudanças, necessárias na época de Guilherme de Ockham. Porém, as mudanças haviam produzido um mundo social distinto, nem mais nem menos caótico que anteriormente, pelo menos a primeira vista.
A publicação do Discurso da servidão voluntária tem sua data um tanto controvertida, pois na realidade Etienne de La Boétie entregou os manuscritos a Montaigne, seu amigo, que tinha como intenção publicá- lo no primeiro livro dos Ensaios. Porém, os huguenotes lançaram o texto antes, em 1574, incluso em um panfleto tiranicida. Montaigne afirmou que o texto fora escrito em 1544, quando Etienne de La Boétie era ainda estudante e contava com apenas 18 anos. Porém, existem vestígios que na realidade datam a obra posterior a 1544, como afirmara Montaigne. E acredita-se que o fato de Montaigne haver antecipado sua data se deu pelo fato de distanciá-lo de um acontecimento histórico francês bastante polêmico que foi a Noite de São Bartolomeu, fato relacionado ao massacre de protestantes na França. Portanto, o tempo em que surge e é divulgado o Discurso da servidão voluntária é marcado pelo que denomina o historiador Nicolau Sevcenko, de nova ordem social. Diz ele:
Nos termos desse quadro, deparamo-nos com uma nova ordem social.
Sem a mediação das corporações, empresários e empregados situamse como indivíduos isolados na sociedade. Seus padrões de ajustamento à realidade passam a ser as condições do mercado, a ordem jurídica imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus companheiros de interesse. A ruptura dos antigos laços sociais de dependência social e das regras corporativas promovem, portanto, a liberação do indivíduo e o empurram para a luta da concorrência com outros indivíduos, conforme as condições postas pelo Estado e pelo capitalismo. O sucesso ou o fracasso nessa nova luta dependeria [...] de quatro fatores básicos: acaso, engenho, astúcia e riqueza. Para os pensadores renascentistas, a educação seria o fato decisivo. (SEVCENKO, 1988, p. 11)
Percebe-se que é um tempo onde as mudanças estão produzindo novas necessidades. É nesse contexto que é escrito o Discurso da servidão voluntária. É preciso atenção, sobretudo a questão da liberdade. E a liberdade como princípio ético para a ação humana diante das circunstâncias por ele vivenciada.


Por que os homens
entregam sua liberdade?

Etienne de La Boétie começa a discutir buscando entender porque os homens abrem mão de sua liberdade concedendo a um, no caso o rei, o direito de decidir e a todos comandar. Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande providência para protegê-los, grande cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo num lugar onde poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem. (LA BOÉTIE, 2001, p. 12)
A questão que intriga Etienne de La Boétie é o fato de os homens abrirem mão de sua liberdade em benefício de outrem. Pensa ser estranho até mesmo quando este outro é alguém que sempre tenha a todos feito o bem, tenha agido como amigo. Ao fazer uma análise ao longo da história, observou o fato de que apesar “(...) da bravura que a liberdade põe no coração daqueles que a defendem(...), e mesmo assim “(...) em todos os países, em todos os homens, todos os dias, faz com que um homem trate cem mil como cachorros e os prive de sua liberdade?” (LA BOÉTIE, 2001, p. 14).

Isto é tão ilógico e irracional para Etienne de La Boétie que ele assim pergunta: “Quem acreditaria nisso se em vez de ver apenas ouvisse dizer?” (LA BOÉTIE, 2001, p. 14) Está falando diretamente a seus contemporâneos, procurando sensibilizá-los a lutar pela liberdade, a romperem com a servidão. Passa a indicar o que no seu entendimento faz com que os homens estejam sobre pesados jugos, afirmando que:
Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal – melhor dizendo, persegue- o. Eu não o exortaria se recobrar sua liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver à sua vontade. Que! Se para ter liberdade basta desejá-la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo ganhá-la com uma única aspiração, e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar com seu sangue – o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada deve estimar a vida desprezível e a morte salutar?
(LA BOÉTIE, 2001, p. 14-15).
Etienne de La Boétie afirma que são os próprios homens quem se fazem dominar, pois bastaria rebelarem-se que teriam de volta a liberdade que lhes fora roubada. Nesse sentido, trabalha com uma idéia revolucionária, que é o fato de atribuir ao povo, a população o papel de sujeito da própria História. Alerta para o fato de que se não o faz, talvez o seja pela segurança que sente sob o jugo do poder dos reis e príncipes. Porém, ao agir dessa forma, os homens vivem como se fossem bichos.

O que faz com que o
homem não seja livre?

E qual seria a causa de todas as mazelas que o homem sofre no seu dia-a-dia? Segundo Etienne de La Boétie:

É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem a fazer essa; bela aquisição só porque ela é demasiado fácil. (LA BOÉTIE, 2001, p. 15)

Insiste na idéia de que se não temos liberdade é porque não a queremos.
E que todos os males que sofremos são decorrência de a havermos perdido-a, e, no entanto, não nos dispomos a recuperá-la. Para sermos felizes, segundo ele, bastaria que “(...) vivêssemos com os direitos que a natureza nos deu e com as lições que nos ensina, seríamos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de ninguém”. (LA BOÉTIE, 2001, p. 17) Pressupõe que é de nossa própria natureza ser livre. Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza, e ao qual não se pode ser cego é que a natureza, ministra de deus e governante dos homens, fez-nos todos da mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que nos entreconhecêssemos todos como companheiros, ou melhor, como irmãos. (LA BOÉTIE, 2001, p. 17)

Rejeita a tese de que uns sejam mais que outros, como alguns teóricos da Teoria do Direito Divino, que pressupunham que o rei e a família real eram mais em dignidade que o restante dos homens, o que justificava a obediência e reverência a eles prestada. Por isso, procura de forma contundente denunciar o marasmo diante da servidão.

É incrível como o povo, quando se sujeita, de repente cai no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para recobrá-la, servindo tão francamente e de tão bom grado que ao considerá-lo dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão”. (LA BOÉTIE, 2001, p. 20).

Embora fale para o conjunto da população, como os que detêm o poder em relação a rebelar-se contra o jugo da servidão, Etienne de
La Boétie tem o cuidado de distinguir entre aqueles que jamais conheceram a liberdade, pode-se aqui entender a população a quem sempre foi negado tais direitos, daqueles que tornam o povo objeto de tirania.
Por certo não porque eu estime que o país e a terra queiram dizer alguma coisa; pois em todas as regiões, em todos os ares, amarga é a sujeição e aprazível ser livre; mas porque em meu entender deve-se ter piedade daqueles que ao nascer viram-se com o jugo no pescoço; ou então que sejam desculpados, que sejam perdoados, pois não tendo visto da liberdade sequer a sombra e dela não estando avisados, não percebem que ser escravos lhes é um mal. (LA BOÉTIE, 2001, p. 23)

Procura ser mais enfático ao falar daqueles que são instrumentos da tirania:
Vendo porém essa gente que gera o tirano para se encarregar de sua tirania e da servidão do povo, com freqüência sou tomado de espanto por sua maldade e às vezes de piedade por sua tolice. Pois, em verdade, o que é aproximar-se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar com as duas mãos e abraçar a servidão? Que ponham um pouco de lado sua ambição e que se livrem um pouco de sua avareza, e depois, que olhem-se a si mesmos e se reconheçam; e verão claramente que os aldeões, os camponeses que espezinham o quanto podem e os tratam pior do que a forçados ou escravos – verão que esses, assim maltratados, são no entanto felizes e mais livres do que eles. (LA BOÉTIE, 2001, p. 33)

Etienne de La Boétie não condena o povo de uma forma geral por não exercitar o seu direito primordial a liberdade, pois tem a clareza de que se assim age a população, é também por falta de consciência e de conhecimento da situação em que realmente se encontra. Também demonstra saber que todo o poder, mesmo que exercido por apenas um, tem sua sustentação em grupos que são favorecidos pelo poder instituído.
Em relação aos que favorecem os tiranos deixa transparecer sua indignação e preocupa-se também em orientá-los ao dizer-lhes que são menos livres que o próprio povo, pois sabem o que é ser livre, já foram livres e no entanto, recusam-se a ser.

1968: o Brasil e os Limites à Liberdade
No Brasil, no ano de 1968, no mês de dezembro, o governo militar que, através do Golpe de 64, havia tomado o poder, decreta o Ato Institucional no 5, AI-5, como forma de manter a ordem ante as manifestações contrárias a ditadura que se estabelecera no país. Segundo o historiador Boris Fausto, o AI-5 representou:

Governo militar.
Uma verdadeira revolução dentro da revolução, ou, se quiserem, uma contra-revolução dentro da contra-revolução. Em dezembro de 1968, a edição do AI-5 restabeleceu uma série de medidas excepcionais suspensas pela Constituição de 67. Voltaram as cassações e o fechamento político e todo esse fechamento não tinha prazo, quer dizer, o AI-5 veio para ficar. Há quem diga que o AI-5 foi uma espécie de resposta ao início da luta armada, mas em 68 as ações armadas eram poucas. Ao que parece, o fator desencadeante pode ter sido a mobilização geral da sociedade brasileira em 1968 e a convicção ideológica de que qualquer abertura redundava em desordem. Então era preciso endurecer, fechar, recorrer a poderes excepcionais para combater a subversão. (FAUSTO, 2002, p. 99-100)

O nome que se deu para a luta da sociedade brasileira pela liberdade foi subversão. Na realidade os Atos Institucionais aos poucos mudavam a Constituição, retirando-lhe todos os direitos pressupostos à existência de um regime democrático, pois com o Golpe de 64, tais direitos eram inviáveis à manutenção da ditadura militar.
Na época do AI-5, a partir de 1968, haviam diversos setores da sociedade que se manifestavam e exigiam a reabertura democrática, porém com a edição do AI-5 foi autorizada a cassação de todos os direitos políticos e a perseguição e prisão de todos os que se manifestassem publicamente contrários às medidas do governo.
Com o AI-5, “(...) todos os setores da vida brasileira, sobretudo imprensa, criações artísticas e culturais, deveriam se submeter ao controle absoluto do governo, e as instituições civis não poderiam esboçar a menor crítica ao comportamento das autoridades”. (BARROS, 1991, p. 42) O que caracterizou, nesse período, a perda total da liberdade e dos direitos civis.
Diante do controle que o Estado passa a fazer das manifestações artísticas não restou aos artistas a não ser a tentativa de driblar a censura.
Na música popular foi muito comum o uso de metáforas e analogias, que, às vezes, até conseguiam passar pela censura, outras eram recolhidas em seguida, após terem sido autorizadas. Um dos movimentos que se destaca nesse momento histórico é o Tropicalismo, que surgiu como uma ruptura contra a Bossa Nova. Entre os anos 1967 e 1970, o Tropicalismo traz irreverência e informalidade com um objetivo, similar ao apregoado por Oswald de Andrade, no Manifesto Pau-Brasil, que é o de incorporar o estrangeiro (o diferente e estranho) e transformá-lo. É claro que além dessa característica e devido a isso, o Tropicalismo servir-se-á das diversas manifestações musicais, então presentes, sobretudo a música de protesto. A importância do Tropicalismo e sua abrangência evidenciam-se pela grandeza de seus músicos e compositores e a variedade das músicas com temáticas e estilos diferenciados e, sobretudo a eletrificação dos instrumentos.
Além do Tropicalismo, destaca-se nesse momento, a Arte Engajada, que era um movimento que seus membros eram oriundos do meio universitário e que tinha nos festivais a forma de divulgar e buscar apoio popular as suas idéias. Entre os compositores ligados a Arte Engajada, já que não era um movimento restrito a MPB, destacam-se Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré e Chico Buarque. Apresenta-se para exemplificar o teor das composições da MPB na época duas canções que, inclusive, foram proibidas pela censura, Apesar de Você, de Chico Buarque, que havia passado pela censura, mas em seguida foi recolhida e, a Canção da Despedida, de Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré, que foi imediatamente barrada pela censura e, segundo
o autor, tentou várias vezes incluí-la em seus discos, mas sem sucesso.
É interessante que ao fazer uma primeira leitura, ou ao ouví-las sem maior atenção ao contexto em que foram produzidas, tem-se a impressão de reclamações banais existentes entre amigos e amantes. Para que se possa ter uma idéia do teor das duas composições:
Já vou embora, mas sei que vou voltar / Amor não chora se eu volto é pra ficar / Amor não chora que a hora é de deixar / O amor de agora pra sempre ele fica. (Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré - Canção da Despedida)
Hoje você é quem manda / Falou, ta falado, não tem discussão / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão / Você que inventou o pecado / Que inventou de inventar / Toda a escuridão / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Desse meu penar

(Chico Buarque - Apesar de Você).
É claro que a censura não se limitou apenas às músicas populares. Optamos por exemplificar a censura por meio da música porque é mais fácil analisar e entender o caráter subversivo das mesmas. Perceber o uso de metáforas que os compositores fizeram para driblar a censura, mesmo que isso lhes custasse os riscos de prisão e tortura, além de terem suas obras proibidas e recolhidas.

Referências

ARENDT, H. Que é liberdade? In.: Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2003.
BARROS, E. L. de. Os governos militares. O Brasil de 1964 a 1985 – os generais e a sociedade
a luta pela democracia. São Paulo: Contexto, 1991.
FAUSTO, B. História do Brasil / por Boris Fausto. Brasília: MEC/SEED, 2002.
LA BOÉTIE, E. Discurso da Servidão Voluntária. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.
OCKHAM, G. de. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Traduçano e nota de Luis Alberto de
Boni. Petrópolis: Vozes, 1988.
SEVCENKO, N. O Renascimento. 11ª ed. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas,1988.

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