Filosofia

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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO E COISIFICAÇÃO DO OUTRO



Pobreza e Exclusão

Não há evidências, na história, de que houve alguma sociedade igualitária. Havia idéias de distinção e de discriminação entre grupos sociais. Diferenças de sexo e idade onde grupos discriminados exerciam funções diferentes, tendo certa parcela de poder e determinados direitos e deveres. Na sua “evolução”, as sociedades foram se tornando mais complexas, onde membros não tinham iguais acesso a algumas vantagens como poder de decisão e a liberdade. Durante todo esse processo, tendência marcante foi a “diferença” crescente tornando complexa a sociedade, onde diferentes grupos formados passaram a se distinguir por etnia, nacionalidade, religião, profissão e, de forma mais acentuada, por classe social. Como sociedades plurais, formadas por inúmeros grupos, cada um teriam uma função, um conjunto de direitos, deveres, obrigações e possibilidades de ação social.
Tem-se assistido o resultado desse longo processo histórico, na formação de uma civilização complexa e diferenciada, onde todos procuram conquistar direitos na luta pela igualdade social. O que se vê é que boa parte da população vive à margem dos benefícios do desenvolvimento industrial e sem terem acesso a uma quantidade mínima não só de bens, mas de educação, saúde e segurança.
A modernidade levou a humanidade a acreditar no progresso, na evolução de indivíduos e nações, enfim, onde acreditaram que tudo daria certo. No entanto, a realidade comprovou o contrário. Nessa forma de organização social há contradição quando a desigualdade assume o caráter de privilégio de alguns e de injustiça para com outros. E é essa nova consciência que torna a pobreza tão incômoda.
Muitos defendem que todos os homens têm os mesmos direitos e são iguais perante a lei. Mas como justificar tamanha diferença social?
Em pleno desenvolvimento da indústria de massa, se produz e se coloca em circulação uma quantidade imensa de produtos. Com a concorrência entre os grupos sociais acabam por criar mecanismos de apropriação e monopólio dos bens econômicos e sociais, acabando por gerar crescente concentração de renda. No meio dessa sociedade da abundância, a pobreza adquire um caráter contraditório e, até, paradoxal. E tem como agravante, o apelo ao consumo das campanhas publicitárias veiculadas pelos meios de comunicação de massa criando uma distância social maior entre ricos e pobres. É trágico e inaceitável, já que, consumismo e abundância fazem parte do desejo de bem-estar social no interior de cada pessoa carente.
Com uma economia organizada e globalizada, podemos medir os índices de analfabetismo, dívida externa, renda per capita, produto interno bruto, que são análise freqüente para a classificação das regiões e nações onde adquirem grande importância já que medem características presumidamente presentes em diferentes agrupamentos sociais e populações. É no cálculo estatístico que a pobreza deixa de ser uma característica abstrata ou um conceito para se tornar uma grandeza. Pessoas, grupos sociais e países passam a ser considerados pobres não só em relação a si mesmos, como também em relação aos outros grupos ou países, com os quais são permanentemente comparados.
Carência de bens materiais e carência de recursos de sobrevivência são formas clássicas de pobreza. John Friedmann e Leonie Sandercock, especialistas em planificação urbana, em artigo intitulado “Os desvalidos”, na publicação de maio de 1995, pelo O Correio da UNESCO, revelaram três diferentes formas de pobreza:
1. Despossessão Psicológica - diz respeito a um sentimento de autodesvalorização da população pobre em relação à rica, ou de um país pobre em relação a um país rico.
2. Despossessão Social - se manifesta pela completa impossibilidade, de certa cota da população, ter acesso aos mecanismos de êxito social, de atingirem o mínimo de prestígio e manterem relações sociais estruturadas e permanentes.
3. Despossessão Política - é outro lado da pobreza contemporânea e diz respeito à incapacidade de certos grupos sociais terem qualquer participação na vida pública. Não tem acesso aos mecanismos de interferência e ação política.
Atualmente, com a informática e a integração das diversas atividades de mídias digitais, aparece um novo tipo de pobreza, a tecnológica. A pobreza tecnológica se dá quando pessoas, que não possuem "alfabetização digital”, estando excluídas dos mais diferentes espaços e da comunicação globalizada e, o mais importante, do mercado de trabalho também. A pobreza tecnológica aflige, envergonha e exclui.
Muitos economistas e sociólogos tentam descobrir tendências para o futuro das populações carentes. As teorias políticas tentam explicam sua natureza, estudos econômicos e sociais reservam suas análises à compreensão desse problema e o Estado preocupa-se com a questão da pobreza. Mas qualquer que seja a medida a serem adotados os prognósticos é sempre pessimista.
“O capitalismo Industrial alcançará tal nível de desenvolvimento que os recursos naturais do planeta se esgotarão e as populações serão assoladas pela fome.” (Thomas Malthus e David Ricardo)
“O desenvolvimento do modo de produção capitalista levará a uma constante e irreversível concentração de propriedade e riqueza, monopolizada por poucos, enquanto o restante da população estará reduzido a um nível econômico de subsistência.” (Karl Marx, no Manifesto do Partido Comunista)
“Haverá degradação dos níveis de vida da humanidade, com um aumento constante do trabalho árduo, da falta de instrução e saúde e da baixa expectativa de realização pessoal.” (Alfred Marshall, 1927)
As teorias possuíam um caráter de alerta e denúncia, assumiam uma função quase profética, espalhando pessimismo e desconfiança, por se fundamentarem nas leis que regulam o desenvolvimento dos sistemas sociais.
Ao longo dos anos, estas teorias mostraram-se falhas em seus prognósticos, pois vivemos numa sociedade de abundância e não de escassez. E dispomos de meios para uma distribuição mais igualitária de bens. Mas, para que isso ocorra, tem de haver vontade política. Mas o que vemos são homens que participam de maneira consciente dos sistemas econômicos e sociais e que podiam interferir nessa dinâmica problemática, mas nada fazem.
Procurar no perfil da população as justificativas para sua condição subalterna seria uma atitude preconceituosa. Muitas teorias encontram explicações "naturais" e biológicas para a condição social das populações carentes. A título de exemplos temos:
1. Nos Estados Unidos, desenvolveu-se uma teoria que se popularizou como “Curva do Sino”, atribuindo a pobreza dos negros a uma possível inferioridade mental de origem genética. Os índices utilizados para medir esse desempenho intelectual foram influenciados pela situação de pobreza.
2. Herdeiros do etnocentrismo e do eurocentrismo, foi outro estudo que identificava como causas das desigualdades sociais indicadores que nada mais eram do que conseqüências do estado de carência de determinados grupos sociais. Onde esses indicadores revelavam o estado de indigência da população e a complexidade do conceito de pobreza.
3. No Nordeste brasileiro foi evidenciada a pequena estatura da população, conseqüência do baixo poder calórico da alimentação nas faixas sociais mais carentes. Dando, a população como característica, a pobreza e a baixa produtividade local.
Apesar dos avanços tecnológicos e conquistas inimagináveis da sociedade do século XXI, nada tem impedido que a pobreza continue resistente às análises e aos esforços que os Estados dizem estar desenvolvendo. Enquanto isso, as favelas se multiplicam, caracterizando a paisagem urbana; o desemprego aumenta juntamente com a criminalidade e a mendicância.
Os excluídos, grande parte da população, permanece à margem do desenvolvimento e não usufrui dos benefícios alcançados pela sociedade, onde trabalham desde criança, desenvolvendo atividades sem qualificação, não tendo instrução nem acesso a eventos culturais, não desfrutando de saneamento básico e, às vezes, nem de um teto. Às crianças abandonadas na rua, durante décadas, sucedendo uma geração de crianças de rua, geradas sem família e sem moradia, alimentando-se de forma irregular e precariamente, vivem na indigência e são vítimas de violência policial.
A presença constante, próxima e crescente dessa massa de pobres, que chegam a dois terços da população do terceiro Mundo, incomoda e constrange por vários motivos:
1. Demonstra a ineficiência da administração do Estado, do qual se espera medidas racionais;
2. Parece crescer a quantidade de pessoas excluídas do contingente de consumidores nacionais;
3. É temido que essa população crescente se organize e aja politicamente contra um sistema que os marginaliza;
A percepção de incompetência, do sistema econômico e político, se somam ao desconforto de saber que, nos grandes centros, milhares de pessoas não se encontram sob a vigilância das instituições sociais, vivem como podem, à deriva e à revelia dos planejamentos oficiais; Cria-se, em relação a essa população, um sentimento de desconfiança e de insegurança, já que há uma relação entre o crescimento dessa população e o aumento da criminalidade nos grandes centros urbanos. Evidenciado tanto na mídia como nos estudos de caráter científico, o perfil social, dos criminosos, ajudam a reforçar essa associação entre pobreza e criminalidade. Os autores dos crimes, oficialmente denunciados, são geralmente analfabetos, trabalhadores braçais e predominantemente de cor negra. Entretanto, sociólogos mais cuidadosos têm estabelecido outras relações, como o cientista social brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, diz que Contra a população pobre e estigmatizada, a prática policial preconceituosa, somada à desproteção das classes subalternas, torna a relação entre pobreza e criminalidade que já era esperado (profetizado). Acabando por formar um círculo vicioso onde, o indivíduo, para ter trabalho, precisa ter domicílio, registro, carteira profissional e uma situação civil legal. Podem, classes subalternas, atender tais exigências? Não podem, ficam impossibilitados de trabalhar por não cumprir tais exigências, passando a engrossar as fileiras de marginalizados que vivem sob constante vigilância policial.
As estatísticas demonstram que o desenvolvimento econômico tem aumentado a pobreza e a desigualdade social, evidenciando a incompetência do Estado, no combate à pobreza, quando toma só medidas públicas de policiamento, vigilância e violência do que de resolução do problema. E com a globalização dos meios de comunicação, a pobreza, dos países em desenvolvimento, são transformadas em manchete internacional.
A pobreza é estigmatizada, seja pelo caráter de denúncia da falência da sociedade e do Estado em relação às suas funções junto à população, seja pelo contraste com a abundância de produtos, seja pelo perigo iminente de convulsão social. A violência e a agressividade criam um clima de guerra civil nas grandes cidades, onde os índices de criminalidade são alarmantes.
Medo e insegurança associado ao preconceito e discriminação contra as camadas pobres, generaliza medidas arbitrárias de violência e brutalidade, chacinas, linchamentos e assassinatos. Medidas arbitrárias que não resolvem o problema.
Estudos procuram caracterizar de maneira científica a pobreza, buscando causas, denunciando responsáveis, procurando tratá-la como um fenômeno dissociado da sociedade. Chegou-se a falar em "cultura da pobreza”. Realmente, os excluídos dos benefícios da civilização tecnológica acabam por criar mecanismos próprios de sociabilidade. Sua estratégia de defesa e sobrevivência já que a pobreza é constantemente afastada e excluída do convívio social, eximindo-se de responsabilidade os que com ela se relacionam direta ou indiretamente. Estudos teóricos refletem essa política de exclusão, ao analisar a pobreza como um fenômeno em si mesmo. Se essa população não participa dos benefícios dos “privilegiados” e não consome os bens produzidos, certamente algum segmento o faz por ele.
Análises econômicas preocupadas com o desenvolvimento do mercado, elemento fundamental e necessário ao desenvolvimento das nações, têm procurado alertar que a população carente representa uma fragilidade e uma ameaça à estrutura social como um todo. Esses excluídos representam um desperdício de recursos humanos e uma disfunção do sistema econômico.
O distanciamento, social e ideológico, a alienação, a discriminação e a estigmatização, que recaem sobre a pobreza, não ajudam a encontrar soluções para o problema nem evitam que as desigualdades sociais aumentem.
Precisamos entender que o desemprego não é condição de quem não quer ou não está apto ao trabalho, mas resultado de uma inelasticidade na oferta de emprego. Os sem qualificação, sem emprego, sem assistência são operários virtuais, recrutáveis a qualquer momento, um reduto de mão-de-obra barata que anseia por uma situação regular. O que Karl Marx conceituou de "exército industrial de reserva". Só que com a robotização da indústria, que coloca em disponibilidade massas de trabalhadores, e com a exigência cada vez maior de trabalhadores qualificados, o conceito de exército de reserva precisa ser reavaliado. Por quê?
1. O desemprego cresce em número e em diferentes parcelas da população, agora chamado desemprego estrutural.
2. A tecnologia de vanguarda torna a população marginalizada inaproveitável na indústria.
3. Abre-se, nos países mais ricos, uma tendência de permanente diminuição da jornada de trabalho na indústria. Novas relações e novos conceitos de trabalho emergem no mundo: terceirização, trabalho autônomo, desemprego, subemprego, emprego temporário.
Não podemos esquecer o dumping social, um dos principais problemas da competição internacional onde alguns buscam preços competitivos no mercado à custa de exploração de crianças e adolescentes, onde propicia uma competição internacional injusta e cria uma crise no sistema produtivo aumentando a quantidade de produtos e diminuindo, perversamente, a capacidade de consumo de um número cada vez mais crescente de pessoas.
A pobreza é complexa, difícil, pública, patente, estigmatizada e incômoda, ela aflige, envergonha e exclui. É um fenômeno constante e assustador, que exige medidas conscientes e responsáveis. Os esforços serão conjunto, envolvendo políticas estatais (os Bancos do Povo e a criação de Organizações Não-Governamentais), onde deverão desenvolver projetos de assistência social, alfabetização e capacitação para o trabalho, programas comunitaristas, na tentativa de envolver a sociedade em atividades de ajuda à população carente.
A economia tende a crescer e a se desenvolver, a jornada de trabalho e o número de empregados tende a diminuir, restando no futuro, pessoas e tempo, que poderão se envolver em atividades de ajuda à população carente, onde o sistema político vai favorecer uma integração maior da população em geral à sociedade como forma mais eficiente de combate à pobreza.
É inconcebível que, depois de séculos de individualismo onde o homem buscou entender, criticar e participar da vida social e do desenvolvimento de instituições democráticas, como cidadão, sendo-lhe permitida a atuação política, que ele ainda seja considerado vítima da história e dos sistemas sociais.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Karl Marx, materialismo histórico e o comunismo


 

 

A contribuição de Karl Marx para a compreensão da vida em sociedade é uma das mais importantes de toda a história. Inserido em um contexto de grande instabilidade política e imbuído da tarefa de revolucionar o mundo tal como se mostrava até então, Marx e seus seguidores legaram um conjunto de explicações que influencia o pensamento social até os dias de hoje.

Marx nasceu em 1818 na cidade de Triers, que fazia parte do então reino da Prússia (atual Alemanha). Após ter estudado Direito e tomado contato com o pensamento de Hegel e com a economia clássica, Marx passa a elaborar, em parceria com seu colega Friedrich Engels, uma série de ideias e conceitos que caracterizarão o chamado materialismo histórico.Essa corrente de pensamento e o projeto político comunistapelo qual irá militar são as principais contribuições de Marx ao desenvolvimento da sociologia.

E o que é o materialismo histórico? E o que significa o comunismo para Marx e a Sociologia? É a resposta a essas perguntas que nos interessa aqui.

De maneira bastante simplificada, podemos afirmar que o pensamento de Marx é uma crítica radical à sociedade capitalista; nessa crítica, ele tanto procura demonstrar os fundamentos da vida social no capitalismo (a contribuição teórica) como propor meios e caminhos para a superação das contradições desse sistema (a contribuição política). Os fundamentos da vida social deveriam ser buscados nas relações materiais dos indivíduos em sociedade, ou seja, nas formas pelas quais os seres humanos satisfazem suas necessidades materiais. Nesse ponto, Marx inverte o argumento de Hegel, que propunha a explicação da vida em sociedade a partir das ideias e/ou da consciência humana; no marxismo, a consciência humana e as ideias que existem na sociedade são o resultado, direto ou indireto, das necessidades da vida. Ou, como ele afirma em uma de suas passagens mais famosas, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004.

Partindo das ideias de Marx, podemos imaginar a sociedade como um edifício de vários andares: nas fundações, ou seja, naquilo que dá sustentação a todo o edifício, estão as relações materiais: a forma pela qual as pessoas possuem algo, a maneira como produzem e consomem os bens, a maneira como trabalham e são remuneradas, as técnicas utilizadas na produção; acima de tais relações (ou da estrutura), encontram-se ideias tais como a religião, a cultura, a política, etc. As relações materiais (a estrutura do edifício) sustentam e tornam possível a superestrutura (o conjunto das ideias e manifestações sociais).

“(…) A história de toda a sociedade até hoje é a história da luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, burguês da corporação e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si, travaram uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, aberta outras, uma luta que acabou sempre com uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou com o declínio comum das classes em luta.” MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004.

Um conceito fundamental nas explicações marxistas é o de classe social. Para Marx e seus seguidores, a sociedade não é uma “coisa” una, homogênea e sem divisões: na realidade, qualquer agrupamento social, em qualquer época, sempre teve em seu interior divisões entre os homens que o compunham. Na Antiguidade Clássica, na Idade Média ou nos nossos dias, há uma parcela minoritária da população que controla, de maneiras mais ou menos explícitas, as demais parcelas (ou classes). Ou seja, há classes que dominam e classes que são dominadas. Nesse esquema explicativo, as transformações históricas seriam o reflexo do inevitável conflito que existe entre as classes sociais.

Nas palavras de Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral”; “na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004.Compreendida tal concepção, torna-se mais fácil entender o projeto político empreendido por Marx. O século XIX na Europa já foi chamado por um historiador como “a era das revoluções”, devido às inúmeras perturbações políticas e sociais que aquele continente sofreu como desdobramentos da Revolução Francesa e das ideias liberais. A perda da hegemonia das grandes dinastias hereditárias, a agitação das classes trabalhadoras, a difusão das ideias socialistas e liberais e os anseios imperialistas mostravam-se para Marx como o momento histórico no qual uma classe (os trabalhadores) poderia romper a hegemonia burguesa e superar o modo de produção capitalista. Ou seja, a interpretação do mundo empreendida por Marx e Engels (o materialismo histórico) não se esgotava em si, pois era preciso transformar o mundo (através da militância comunista). Os ideais políticos de Marx e Engels estão expressos no Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848.

Se fôssemos resumir, em uma lista, os conceitos fundamentais para entender o pensamento de Karl Marx, veríamos que vários deles incorporaram-se ao vocabulário corrente quando falamos sobre a vida social: a classe, o modo de produção, a ideologia e a alienação são conceitos que, se não foram criados por Marx, ganharam um novo e importante significado a partir dele.

O pensamento marxista, dessa forma, abriu as portas do conhecimento sobre a sociedade a partir de uma perspectiva inédita, ainda que usasse muitas ideias de outros autores. Ao colocar novas perguntas, o marxismo abre a possibilidade de que o homem interprete fenômenos como o capitalismo, o trabalho, a política e o Estado. Ao lado de Durkheim e Max Weber, as obras de Marx vão ajudar a definir o campo e o objeto de estudo da sociologia.

Professor colaborador: Christiano E. Ferreira

 

terça-feira, 16 de abril de 2013

LIBERDADE

Djaci Pereira Leal1

Liberdade - essa palavra
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que a explique,
e ninguém que não entenda!
Cecília Meirelles

O que é liberdade?
O que é ser livre?

Liberdade
A discussão em torno da liberdade tem se apresentado, historicamente,
como um problema para a humanidade. Recorremos aqui a
dois filósofos, distantes de nós em termos de tempo, mas não em relação
à discussão e preocupação que demonstraram em relação à liberdade.
O primeiro, Guilherme de Ockham, nascido na vila de Ockham,
condado de Surrey, próximo de Londres, entre 1280 e 1290. O segundo,
Etienne de La Boétie, nascido em Serlat, na França, em 1530. São
dois autores de épocas e lugares diferentes que discutem o mesmo
problema – a liberdade.
Vamos buscar o que acontecia no mundo Ocidental cristão naquele
momento que fez com que, Guilherme de Ockham, escrevesse a obra
Brevilóquio sobre o principado tirânico, com uma nítida preocupação
com a liberdade dos homens e mulheres que viviam naquele momento
histórico.
Com 30 anos de idade estava em Oxford estudando para obter o título
de Mestre em Teologia. Na época empenhou-se em comentar os
quatro livros das Sentenças, de Pedro Lombardo. Mas como afirma De
Boni nas notas introdutórias a tradução do Brevilóquio sobre o principado
tirânico: “(...) desde logo percebeu-se que o jovem bacharel setenciário
não era um simples comentador ou repetidor, mas um inovador
disposto a rever até mesmo posições de seu ilustre confrade Duns
Scotus, cuja doutrina campeava soberana em Oxford e Cambridge”.
(OCKHAM, 1988, p. 11) A partir de sua atitude questionadora e independente,
Guilherme de Ockham enfrentou problemas na sua formação e na divulgação
de seus trabalhos, que sofreram a censura da Igreja.
Guilherme de Ockham, pela sua proximidade com os franciscanos,
acabou por tomar partido nas disputas desses frades e a cúria pontifícia
acerca da pobreza.
Como destaca De Boni, neste debate, “(...) atingia-se diretamente a própria Igreja, cuja riqueza estava sendo questionada: uma Igreja rica estava longe da perfeição evangélica, e nem mesmo era a Igreja de Cristo”. (OCKHAM, 1988, p. 12) A participação de Ockham nessa polêmica gerou a necessidade de asilar-se, com outros frades franciscanos, junto a Luís da Baviera, que se encontrava em Pisa. A partir desse momento, Guilherme de Ockham passou e se ocupar mais de temas religiosospolíticos, referentes à pobreza e ao poder papal e poder imperial, deixando de lado os estudos de Teologia e de Metafísica. Guilherme de Ockham faleceu em abril de 1349 ou de 1350, não se sabe se reconciliado oficialmente com a Igreja, pois havia recebido a excomunhão papal em 1328. Sua morte é bem provável que tenha sido devido a Peste Negra.

Liberdade: a Contribuição
de Guilherme de Ockham

A vida de Guilherme de Ockham foi bastante agitada e marcada pela luta contra o autoritarismo. Observe que se ordenara padre em 1306, vai a Oxford estudar teologia e depara-se com o autoritarismo das idéias, pois não pôde discordar ou discutir as idéias dos grandes mestres da época, no caso, Pedro Lombardo e Duns Scotus, e em decorrência disso acabou por lutar contra o autoritarismo papal, e tomar o partido dos franciscanos nas discussões com o papa João XXII.
É preciso ressaltar que Guilherme de Ockham é um autor que deixa transparecer sua intensa luta pela liberdade e que ao longo de sua vida jamais permitiu que lha tirassem e, mais, buscou através de suas obras orientar para que os homens de sua época também não o permitissem. Não é por acaso que o pensamento de Guilherme de Ockham ficou relegado nos compêndios e seu nome citado entre os adversários da Igreja juntamente com outros nomes bem conhecidos, tais como, Pelágio, Ario, Berengário e Lutero. Para a ética a liberdade é o assunto por excelência.

A liberdade é muito importante para a ética, porque se ocupa do agir humano, da finalidade de nossa vida e existência; a ética sempre é a orientação para que possamos fazer nossas escolhas e fazê-las de forma acertada que é o que de fato vai nos garantir a felicidade. Para Ockham, a liberdade apresenta-se como a possibilidade que se tem de escolher entre o sim ou o não, de poder escolher entre o que me convém ou não e decidir e dar conta da decisão tomada ou de simplesmente deixar acontecer. E o que é mais impressionante é o fato de que a cada escolha que se faz determina e constrói nossa existência, aproximando- nos ou não da própria felicidade. É essa a ótica da discussão de Guilherme de Ockham no seu Beviláquio sobre o principado tirânico.
Aflijo-me com não menor angústia porque não procurais inquirir quão contrário à honra divina é este principado tirânico usurpado de vós iniquamente, embora seja tão perigoso à fé católica, tão oposto aos direitos e a liberdade que Deus e a natureza vos concederam; e o que é mais lamentável, recusais, confundis e julgais os que tencionam informar-vos da verdade
(OCKAHM, 1988, p. 27)

A preocupação de Guilherme de Ockham é com o fato de que o poder tirânico é contrário a liberdade a nós concedida por Deus e a natureza. Isto não é admitido como verdade por todos os filósofos, mas para o pensamento medieval do qual Guilherme de Ockham é um representante, mesmo que tenha sido rejeitado ao romper com algumas questões medievais, isso é uma verdade, pois o filósofo medieval aceita a verdade revelada como verdade e a fé como critério de conhecimento.
Guilherme de Ockham denuncia aqueles que em nome da religião passaram a usurpar a liberdade. E que tais usurpadores entendem, assim como ele, a liberdade como um dom de Deus da natureza.

Discussão em torno da Liberdade

Para entender um pouco o contexto do pensamento medieval, vale
a pena destacar o que nos apresenta De Boni:
Na ânsia de fundamentar filosoficamente a fé cristã, os teólogos do século
XIII haviam se valido da ética, do De Anima e da Metafísica aristotélicos.
Ockham [...] percebe que é necessário salvar a liberdade absoluta de Deus, cuja vontade se determina apenas por si mesma, e com isso abre espaço para o conhecimento da realidade humana como realidade contingente. Os pensadores do século XIII haviam construído uma teoria do conhecimento na qual, após explicar-se a abstração, pergunta-se: como é possível o conhecimento das coisas em sua singularidade? Ockham inverte a questão, [...] e constata: o que temos são coisas individuais, numericamente diferenciadas entre si: que valor tem então nosso conhecimento universal? Um mundo de indivíduos iguais entre si e sem intermediários é, porém, um mundo que se desprende totalmente das agonizantes hierarquias medievais; um mundo que encontra sua própria explicação dentro de si mesmo, sem receio de seus membros constituintes. (OCKHAM, 1988, p. 15-16)
Guilherme de Ockham pergunta-se, ao contrário dos pensadores do século XIII, pela validade do conhecimento universal enquanto aqueles perguntavam pelo conhecimento das coisas singulares. Ao fazer isso, chama a atenção para o mundo dos indivíduos. Guilherme de Ockham, situa a ação humana no indivíduo e suas escolhas reais e concretas, presentes não em verdade ou entes universais, mas nas coisas e situações particulares, singulares.
“Também a razão natural dita que, como o gênero humano deve viver pela arte e pela razão, como afirma o filósofo pagão, ninguém deve ignorar o que está obrigado a fazer através de suas faculdades humanas, não pelas animais”. (OCKHAM, 1988, p. 33) Guilherme de Ockham distingue faculdades humanas de faculdades animais, ou seja, o homem possui a capacidade de viver pela arte e pela razão, que no entendimento do filósofo seriam as faculdades humanas e é por elas que deve agir e não pelas faculdades animais, ou seja, seus instintos. Pressupõe-se assim que é de nossa própria natureza a capacidade de escolha exercida por meio da liberdade, entendida como presente de Deus e da natureza.
Após questionar o poder papal busca apresentar a liberdade fundando- a na lei evangélica, é o que pretende fazer ao dizer que:
A lei evangélica não é de maior, mas de menor servidão, se comparada com a mosaica, e por isso é chamada por Tiago de lei da liberdade (Tg 1,25).
A lei mosaica, devido ao peso da servidão, segundo sentença de São Pedro (At 15, 7s), não devia ser imposta aos fiéis. Diz ele, falando do jugo da lei de Moisés (At 15, 10): “Por que provocais agora a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais, nem nós pudemos suportar? Destas palavras conclui-se que um jugo tão pesado e de tamanha servidão, como foi a lei mosaica, não foi imposto aos cristãos. (OCKHAM 1988, p. 47-48) Guilherme de Ockham, assim como os demais filósofos medievais, faz uso da revelação cristã, portanto da Bíblia como verdade revelada.
É por isso que constantemente utiliza citações bíblicas para fundamentar suas teses. Na citação acima, Guilherme de Ockham está discutindo que com Moisés houve uma legislação que era opressiva e que Jesus veio justamente libertar o homem de tal jugo e servidão. Portanto, o poder papal não pode apresentar-se de forma alguma como um peso aos homens, já que Guilherme de Ockham afirma que a opressão do poder papal é lesiva não somente aos cristãos, mas a toda sociedade.
A lei de Cristo seria uma servidão de todo horrorosa, e muito maior que a da lei antiga, se o papa, por preceito e ordenação de Cristo, tivesse tal plenitude de poder que lhe fosse permitido por direito, tanto no temporal como no espiritual, sem exceção, tudo o que não se opõe à lei divina e ao direito natural. Se assim fosse, todos os cristãos, tanto os imperadores como os reis e seus súditos, seriam escravos do papa, no mais estrito sentido do termo, porque nunca houve nem haverá alguém que, de direito, tenha maior poder sobre qualquer homem do que aquele que sobre ele pode tudo o que não repugna ao direito natural e ao divino. (OCKHAM, 1988, p. 48-49)
Guilherme de Ockham tem a nítida preocupação de limitar o poder papal ao direito natural e divino. Isto ocorre porque no século XIV o poder da Igreja era imenso e havia a afirmação de que o poder papal estava acima do poder temporal, pelo fato de ser aquele de origem divina; procura desmontar a tese da superioridade do poder espiritual sobre o temporal, situando-os como poderes distintos e legítimos, e que ambos não podem ir além de seus limites, pois isto contraria o direito à liberdade dos homens, algo também pressuposto por Deus e pela natureza.
[...] Pela lei evangélica não só os cristãos não se tornam servos do papa, como também o papa não pode, pela plenitude do poder, onerar qualquer cristão, contra a vontade deste, sem culpa e sem causa, com cerimônias cultuais de tanto peso como o foram as da velha lei. E se o tentar fazer, tal fato não tem valor jurídico e, pelo direito divino, é nulo. (OCKHAM, 1988, p. 50)
Guilherme de Ockham coloca no seu devido lugar o poder papal, ou seja, pela lei evangélica somos livres e como tal devemos ser respeitados e qualquer tentativa de imposição de jugos contrários a mesma lei são nulos, sem valor e pesam na responsabilidade de quem o fizer, mesmo que seja o papa.
Hannah Arendt, (1906 – 1975) na obra Entre o passado e o futuro, ao discutir no capítulo, O que é liberdade? afirma:
O campo em que a liberdade sempre foi conhecido, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política.
E mesmo hoje em dia, quer saibamos ou não, devemos ter sempre em mente, ao falarmos do problema da liberdade, o problema da política e o fato de o homem ser dotado com o dom da ação; pois ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular sem, implícita ou explicitamente, tocar em um problema da liberdade humana. A liberdade, além disso, não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade, que só raramente – em épocas de crise ou de revolução
– se torna o alvo direto da ação política, é na verdade o motivo porque os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d‘être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação (Arendt, 2003, p. 191-192)



Liberdade: Contribuição
de Etienne de La Boétie

A obra Discurso da servidão voluntária, de Etienne de La Boétie é de um momento histórico bastante distinto do de Guilherme de Ockham.
Enquanto Guilherme de Ockham discutia e apresentava idéias que serviam a destruição dos pilares da época em que vivia e acentuando determinadas mudanças que pareciam ser necessárias; por sua vez Etienne de La Boétie vivenciava as mudanças, necessárias na época de Guilherme de Ockham. Porém, as mudanças haviam produzido um mundo social distinto, nem mais nem menos caótico que anteriormente, pelo menos a primeira vista.
A publicação do Discurso da servidão voluntária tem sua data um tanto controvertida, pois na realidade Etienne de La Boétie entregou os manuscritos a Montaigne, seu amigo, que tinha como intenção publicá- lo no primeiro livro dos Ensaios. Porém, os huguenotes lançaram o texto antes, em 1574, incluso em um panfleto tiranicida. Montaigne afirmou que o texto fora escrito em 1544, quando Etienne de La Boétie era ainda estudante e contava com apenas 18 anos. Porém, existem vestígios que na realidade datam a obra posterior a 1544, como afirmara Montaigne. E acredita-se que o fato de Montaigne haver antecipado sua data se deu pelo fato de distanciá-lo de um acontecimento histórico francês bastante polêmico que foi a Noite de São Bartolomeu, fato relacionado ao massacre de protestantes na França. Portanto, o tempo em que surge e é divulgado o Discurso da servidão voluntária é marcado pelo que denomina o historiador Nicolau Sevcenko, de nova ordem social. Diz ele:
Nos termos desse quadro, deparamo-nos com uma nova ordem social.
Sem a mediação das corporações, empresários e empregados situamse como indivíduos isolados na sociedade. Seus padrões de ajustamento à realidade passam a ser as condições do mercado, a ordem jurídica imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus companheiros de interesse. A ruptura dos antigos laços sociais de dependência social e das regras corporativas promovem, portanto, a liberação do indivíduo e o empurram para a luta da concorrência com outros indivíduos, conforme as condições postas pelo Estado e pelo capitalismo. O sucesso ou o fracasso nessa nova luta dependeria [...] de quatro fatores básicos: acaso, engenho, astúcia e riqueza. Para os pensadores renascentistas, a educação seria o fato decisivo. (SEVCENKO, 1988, p. 11)
Percebe-se que é um tempo onde as mudanças estão produzindo novas necessidades. É nesse contexto que é escrito o Discurso da servidão voluntária. É preciso atenção, sobretudo a questão da liberdade. E a liberdade como princípio ético para a ação humana diante das circunstâncias por ele vivenciada.


Por que os homens
entregam sua liberdade?

Etienne de La Boétie começa a discutir buscando entender porque os homens abrem mão de sua liberdade concedendo a um, no caso o rei, o direito de decidir e a todos comandar. Nossa natureza é de tal modo feita que os deveres comuns da amizade levam uma boa parte de nossa vida; é razoável amar a virtude, estimar os belos feitos, reconhecer o bem de onde recebemos, e muitas vezes diminuir nosso bem-estar para aumentar a honra e a vantagem daquele que se ama e que o merece. Em conseqüência, se os habitantes de um país encontraram algum grande personagem que lhes tenha dado provas de grande providência para protegê-los, grande cuidado para governá-los, se doravante cativam-se em obedecê-lo e se fiam tanto nisso a ponto de lhe dar algumas vantagens, não sei se seria sábio tirá-lo de onde fazia o bem para colocá-lo num lugar onde poderá malfazer; mas certamente não poderia deixar de haver bondade em não temer o mal de quem só se recebeu o bem. (LA BOÉTIE, 2001, p. 12)
A questão que intriga Etienne de La Boétie é o fato de os homens abrirem mão de sua liberdade em benefício de outrem. Pensa ser estranho até mesmo quando este outro é alguém que sempre tenha a todos feito o bem, tenha agido como amigo. Ao fazer uma análise ao longo da história, observou o fato de que apesar “(...) da bravura que a liberdade põe no coração daqueles que a defendem(...), e mesmo assim “(...) em todos os países, em todos os homens, todos os dias, faz com que um homem trate cem mil como cachorros e os prive de sua liberdade?” (LA BOÉTIE, 2001, p. 14).

Isto é tão ilógico e irracional para Etienne de La Boétie que ele assim pergunta: “Quem acreditaria nisso se em vez de ver apenas ouvisse dizer?” (LA BOÉTIE, 2001, p. 14) Está falando diretamente a seus contemporâneos, procurando sensibilizá-los a lutar pela liberdade, a romperem com a servidão. Passa a indicar o que no seu entendimento faz com que os homens estejam sobre pesados jugos, afirmando que:
Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal – melhor dizendo, persegue- o. Eu não o exortaria se recobrar sua liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver à sua vontade. Que! Se para ter liberdade basta desejá-la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo ganhá-la com uma única aspiração, e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar com seu sangue – o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada deve estimar a vida desprezível e a morte salutar?
(LA BOÉTIE, 2001, p. 14-15).
Etienne de La Boétie afirma que são os próprios homens quem se fazem dominar, pois bastaria rebelarem-se que teriam de volta a liberdade que lhes fora roubada. Nesse sentido, trabalha com uma idéia revolucionária, que é o fato de atribuir ao povo, a população o papel de sujeito da própria História. Alerta para o fato de que se não o faz, talvez o seja pela segurança que sente sob o jugo do poder dos reis e príncipes. Porém, ao agir dessa forma, os homens vivem como se fossem bichos.

O que faz com que o
homem não seja livre?

E qual seria a causa de todas as mazelas que o homem sofre no seu dia-a-dia? Segundo Etienne de La Boétie:

É a liberdade, todavia um bem tão grande e tão aprazível que, uma vez perdido, todos os males seguem de enfiada; e os próprios bens que ficam depois dela perdem inteiramente seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão. Só a liberdade os homens não desejam; ao que parece não há outra razão senão que, se a desejassem, tê-la-iam; como se se recusassem a fazer essa; bela aquisição só porque ela é demasiado fácil. (LA BOÉTIE, 2001, p. 15)

Insiste na idéia de que se não temos liberdade é porque não a queremos.
E que todos os males que sofremos são decorrência de a havermos perdido-a, e, no entanto, não nos dispomos a recuperá-la. Para sermos felizes, segundo ele, bastaria que “(...) vivêssemos com os direitos que a natureza nos deu e com as lições que nos ensina, seríamos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à razão e servos de ninguém”. (LA BOÉTIE, 2001, p. 17) Pressupõe que é de nossa própria natureza ser livre. Mas, por certo se há algo claro e notório na natureza, e ao qual não se pode ser cego é que a natureza, ministra de deus e governante dos homens, fez-nos todos da mesma forma e, ao que parece, na mesma fôrma, para que nos entreconhecêssemos todos como companheiros, ou melhor, como irmãos. (LA BOÉTIE, 2001, p. 17)

Rejeita a tese de que uns sejam mais que outros, como alguns teóricos da Teoria do Direito Divino, que pressupunham que o rei e a família real eram mais em dignidade que o restante dos homens, o que justificava a obediência e reverência a eles prestada. Por isso, procura de forma contundente denunciar o marasmo diante da servidão.

É incrível como o povo, quando se sujeita, de repente cai no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para recobrá-la, servindo tão francamente e de tão bom grado que ao considerá-lo dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão”. (LA BOÉTIE, 2001, p. 20).

Embora fale para o conjunto da população, como os que detêm o poder em relação a rebelar-se contra o jugo da servidão, Etienne de
La Boétie tem o cuidado de distinguir entre aqueles que jamais conheceram a liberdade, pode-se aqui entender a população a quem sempre foi negado tais direitos, daqueles que tornam o povo objeto de tirania.
Por certo não porque eu estime que o país e a terra queiram dizer alguma coisa; pois em todas as regiões, em todos os ares, amarga é a sujeição e aprazível ser livre; mas porque em meu entender deve-se ter piedade daqueles que ao nascer viram-se com o jugo no pescoço; ou então que sejam desculpados, que sejam perdoados, pois não tendo visto da liberdade sequer a sombra e dela não estando avisados, não percebem que ser escravos lhes é um mal. (LA BOÉTIE, 2001, p. 23)

Procura ser mais enfático ao falar daqueles que são instrumentos da tirania:
Vendo porém essa gente que gera o tirano para se encarregar de sua tirania e da servidão do povo, com freqüência sou tomado de espanto por sua maldade e às vezes de piedade por sua tolice. Pois, em verdade, o que é aproximar-se do tirano senão recuar mais de sua liberdade e, por assim dizer, apertar com as duas mãos e abraçar a servidão? Que ponham um pouco de lado sua ambição e que se livrem um pouco de sua avareza, e depois, que olhem-se a si mesmos e se reconheçam; e verão claramente que os aldeões, os camponeses que espezinham o quanto podem e os tratam pior do que a forçados ou escravos – verão que esses, assim maltratados, são no entanto felizes e mais livres do que eles. (LA BOÉTIE, 2001, p. 33)

Etienne de La Boétie não condena o povo de uma forma geral por não exercitar o seu direito primordial a liberdade, pois tem a clareza de que se assim age a população, é também por falta de consciência e de conhecimento da situação em que realmente se encontra. Também demonstra saber que todo o poder, mesmo que exercido por apenas um, tem sua sustentação em grupos que são favorecidos pelo poder instituído.
Em relação aos que favorecem os tiranos deixa transparecer sua indignação e preocupa-se também em orientá-los ao dizer-lhes que são menos livres que o próprio povo, pois sabem o que é ser livre, já foram livres e no entanto, recusam-se a ser.

1968: o Brasil e os Limites à Liberdade
No Brasil, no ano de 1968, no mês de dezembro, o governo militar que, através do Golpe de 64, havia tomado o poder, decreta o Ato Institucional no 5, AI-5, como forma de manter a ordem ante as manifestações contrárias a ditadura que se estabelecera no país. Segundo o historiador Boris Fausto, o AI-5 representou:

Governo militar.
Uma verdadeira revolução dentro da revolução, ou, se quiserem, uma contra-revolução dentro da contra-revolução. Em dezembro de 1968, a edição do AI-5 restabeleceu uma série de medidas excepcionais suspensas pela Constituição de 67. Voltaram as cassações e o fechamento político e todo esse fechamento não tinha prazo, quer dizer, o AI-5 veio para ficar. Há quem diga que o AI-5 foi uma espécie de resposta ao início da luta armada, mas em 68 as ações armadas eram poucas. Ao que parece, o fator desencadeante pode ter sido a mobilização geral da sociedade brasileira em 1968 e a convicção ideológica de que qualquer abertura redundava em desordem. Então era preciso endurecer, fechar, recorrer a poderes excepcionais para combater a subversão. (FAUSTO, 2002, p. 99-100)

O nome que se deu para a luta da sociedade brasileira pela liberdade foi subversão. Na realidade os Atos Institucionais aos poucos mudavam a Constituição, retirando-lhe todos os direitos pressupostos à existência de um regime democrático, pois com o Golpe de 64, tais direitos eram inviáveis à manutenção da ditadura militar.
Na época do AI-5, a partir de 1968, haviam diversos setores da sociedade que se manifestavam e exigiam a reabertura democrática, porém com a edição do AI-5 foi autorizada a cassação de todos os direitos políticos e a perseguição e prisão de todos os que se manifestassem publicamente contrários às medidas do governo.
Com o AI-5, “(...) todos os setores da vida brasileira, sobretudo imprensa, criações artísticas e culturais, deveriam se submeter ao controle absoluto do governo, e as instituições civis não poderiam esboçar a menor crítica ao comportamento das autoridades”. (BARROS, 1991, p. 42) O que caracterizou, nesse período, a perda total da liberdade e dos direitos civis.
Diante do controle que o Estado passa a fazer das manifestações artísticas não restou aos artistas a não ser a tentativa de driblar a censura.
Na música popular foi muito comum o uso de metáforas e analogias, que, às vezes, até conseguiam passar pela censura, outras eram recolhidas em seguida, após terem sido autorizadas. Um dos movimentos que se destaca nesse momento histórico é o Tropicalismo, que surgiu como uma ruptura contra a Bossa Nova. Entre os anos 1967 e 1970, o Tropicalismo traz irreverência e informalidade com um objetivo, similar ao apregoado por Oswald de Andrade, no Manifesto Pau-Brasil, que é o de incorporar o estrangeiro (o diferente e estranho) e transformá-lo. É claro que além dessa característica e devido a isso, o Tropicalismo servir-se-á das diversas manifestações musicais, então presentes, sobretudo a música de protesto. A importância do Tropicalismo e sua abrangência evidenciam-se pela grandeza de seus músicos e compositores e a variedade das músicas com temáticas e estilos diferenciados e, sobretudo a eletrificação dos instrumentos.
Além do Tropicalismo, destaca-se nesse momento, a Arte Engajada, que era um movimento que seus membros eram oriundos do meio universitário e que tinha nos festivais a forma de divulgar e buscar apoio popular as suas idéias. Entre os compositores ligados a Arte Engajada, já que não era um movimento restrito a MPB, destacam-se Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré e Chico Buarque. Apresenta-se para exemplificar o teor das composições da MPB na época duas canções que, inclusive, foram proibidas pela censura, Apesar de Você, de Chico Buarque, que havia passado pela censura, mas em seguida foi recolhida e, a Canção da Despedida, de Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré, que foi imediatamente barrada pela censura e, segundo
o autor, tentou várias vezes incluí-la em seus discos, mas sem sucesso.
É interessante que ao fazer uma primeira leitura, ou ao ouví-las sem maior atenção ao contexto em que foram produzidas, tem-se a impressão de reclamações banais existentes entre amigos e amantes. Para que se possa ter uma idéia do teor das duas composições:
Já vou embora, mas sei que vou voltar / Amor não chora se eu volto é pra ficar / Amor não chora que a hora é de deixar / O amor de agora pra sempre ele fica. (Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré - Canção da Despedida)
Hoje você é quem manda / Falou, ta falado, não tem discussão / A minha gente hoje anda falando de lado / E olhando pro chão / Você que inventou o pecado / Que inventou de inventar / Toda a escuridão / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Desse meu penar

(Chico Buarque - Apesar de Você).
É claro que a censura não se limitou apenas às músicas populares. Optamos por exemplificar a censura por meio da música porque é mais fácil analisar e entender o caráter subversivo das mesmas. Perceber o uso de metáforas que os compositores fizeram para driblar a censura, mesmo que isso lhes custasse os riscos de prisão e tortura, além de terem suas obras proibidas e recolhidas.

Referências

ARENDT, H. Que é liberdade? In.: Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2003.
BARROS, E. L. de. Os governos militares. O Brasil de 1964 a 1985 – os generais e a sociedade
a luta pela democracia. São Paulo: Contexto, 1991.
FAUSTO, B. História do Brasil / por Boris Fausto. Brasília: MEC/SEED, 2002.
LA BOÉTIE, E. Discurso da Servidão Voluntária. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.
OCKHAM, G. de. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Traduçano e nota de Luis Alberto de
Boni. Petrópolis: Vozes, 1988.
SEVCENKO, N. O Renascimento. 11ª ed. Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas,1988.

sábado, 13 de abril de 2013

Mito e Filosofia

O homem pode ser identificado e caracterizado como um ser que pensa e cria explicações. Criando explicações, cria pensamentos. Na criação do pensamento, estão presentes tanto o mito como a racionalidade, ou seja, a base mitológica, enquanto pensamento por figuras, e a base racional, enquanto pensamento por conceitos. Esses elementos são constituintes do processo de formação do conhecimento filosófico.
Este fato não pode deixar de ser considerado, pois é a partir dele que o homem desenvolve suas idéias, cria sistemas, elabora leis, códigos, práticas.
Compreender que o surgimento do pensamento racional, conceitual, entre os gregos, foi decisivo no desenvolvimento da cultura da civilização ocidental é condição para que se entenda a conquista da autonomia da razão (lógos) diante do mito. Isso marca o advento de uma etapa fundamental na história do pensamento e do desenvolvimento de todas as concepções científicas produzidas ao longo da história humana.
O conhecimento de como isso se deu e quais foram as condições que permitiram a passagem do mito à filosofia elucidam uma das questões fundamentais para a compreensão das grandes linhas de pensamento que dominam todas as nossas tradições culturais. Deste modo, é de fundamental importância que o estudante do Ensino Médio conheça o contexto histórico e político do surgimento da filosofia e o que ela significou para a cultura. Esta passagem do pensamento mítico ao pensamento racional no contexto grego é importante para que o estudante perceba que os mesmos conflitos entre mito e razão, vividos pelos gregos, são problemas presentes, ainda hoje, em nossa sociedade, na qual a própria ciência depara-se com o elemento da crença mitológica ao apresentar-se como neutra, escondendo interesses políticos ou econômicos em sua roupagem sistemática, por exemplo.
Ao escrever sobre o conteúdo estruturante Mito e Filosofia, os autores preocupam-se em desenvolver textos que permitam aos estudantes de filosofia fazerem a experiência filosófica a partir de três recortes, que são: Mito e Filosofia; O Deserto do Real; Ironia e Filosofia. Além destes, muitos outros recortes são possíveis dentro deste Conteúdo
Estruturante.

Mito e Filosofia: trata do problema da ordem e da desordem no mundo.
O homem, ao procurar a ordem do mundo, cria tanto o mito como a filosofia. Muitos povos da antigüidade experimentaram o mito, que é um pensamento por imagens. Os gregos também fizeram a experiência de ordenar o mundo por meio do Mito. Estes perceberam que o Mito era um jeito de ordenar o mundo. A experiência política grega, ao longo dos anos, trouxe a possibilidade do pensamento como logos (razão), pois a vida na pólis impôs exigências que o mito já não satisfazia.
Mas será que com a filosofia o mito desaparece? Será que em nossa sociedade ainda nos orientamos pelo pensamento mítico? Além dessas e outras questões, esse conteúdo procurará as conexões sociológicas e históricas para entender o mito e o nascimento da filosofia na Grécia.

O Deserto do Real: trata do problema da distinção entre pensamento crítico e não crítico. O que é real, o que parece ser real? Neste Folhas é proposto que se pense na realidade virtual, tão presente em nosso cotidiano. Quais as conseqüências disso para a constituição do nosso pensamento? Além disso, trata-se da condição histórica do surgimento da Filosofia, o que nos permite perceber a importância da Filosofia para a constituição da democracia e do pensamento político. O texto propõe interdisciplinaridade com a Sociologia e a História.

Ironia e Filosofia: propõe a ironia como experiência do método filosófico.
Basta olhar para nosso dia-a-dia para perceber a ironia. O mundo é irônico, enquanto alguns se fecham em suas casas outros estão presos em sua condição social. É neste contexto que a ironia torna-se uma possibilidade de exercício do pensamento filosófico. Sócrates é apresentado como o primeiro filósofo a utilizar a ironia para levar seus discípulos rumo à aporia para que melhor se apropriassem do pensamento, a maiêutica. Além de Sócrates, Marx é um filósofo que mostra a sociedade capitalista como sendo uma grande ironia, com seus ideais de liberdade e democracia, mas que de fato não dá a todos esse direito.
A música e a literatura são possibilidades de se desenvolver a ironia, seja para lutar contra o poder político autoritário, seja para questionar e criticar a sociedade burguesa falso moralista e conservadora.
Os autores apresentam propostas de atividades que podem possibilitar o exercício do pensamento, do estudo e da criação de conceitos.
Essas atividades levam estudantes e professores a filosofar por meio dos conteúdos da História da Filosofia.
Esse exercício do filosofar ocorrerá por meio da leitura, do debate, da argumentação, da exposição e análise do pensamento. A escrita constitui-se como elemento importante de registro e sistematização, sem a qual o discurso pode perder-se no vazio. É importante lembrar que o processo do filosofar se dá por meio da investigação na qual estudantes e professores descobrem problemas, mobilizam-se na obtenção de soluções filosóficas, estudam a História da Filosofia buscando no trabalho com os conceitos o caminho do filosofar e recriar conceitos.


Mito e Filosofia
Eloi Corrêa dos Santos1, Osvaldo Cardoso2


Guernica de Pablo Picasso no Museu Reina Sofia – Madrid.

Certa vez li um livro do poeta Louis
Aragon (1897-1982), e uma frase
sua despertou-me a reflexão. A
frase era: “o espírito do homem não
suporta a desordem porque não pode
pensá-la” (ARAGON, 1996, p. 215 e 241). E várias perguntas
povoaram meu pensamento: o que é
ordem? E a desordem? Ordem e desordem
existem na realidade ou são representações
de mundo criadas pelo pensamento, imaginação
ou preconceito?


Ordem e Desordem

Ordem e desordem fazem parte da formação do senso comum e dos processos da razão e, a partir desses conceitos, tratemos de efetuar uma avaliação social e histórica. Vivemos inseridos em certas ordens ou organizações (sociais, políticas, religiosas, econômicas), as quais não dependem de nossa escolha. Pensemos, pode ser que não exista desordem, mas ordens diferentes daquela que costumamos pensar que seja a ordem verdadeira, uma razão imutável, que reina imperativa. Por exemplo: a civilização ocidental é diferente da civilização oriental, o sul da América e o norte da América possuem culturas diferenciadas, ou seja, o mundo é culturalmente diverso e isto enriquece os contatos e as relações, é preciso aprender a conviver com essas diferenças para evitar confrontos, conflitos, guerras e sofrimentos.
Assim também podemos pensar a origem do pensamento moderno ocidental: uma ordem social que se construiu com elementos das mais antigas civilizações ocidentais e orientais. Entre a herança que os antigos como Sófocles, Aristófanes, Hesíodo e Homero nos legaram estão os mitos, maravilhosas narrativas sobre a origem dos tempos, que encantam, principalmente, porque fogem aos parâmetros do modo de pensar racional que deu origem ao pensamento contemporâneo.
É certo que as tradições, os mitos, e a religiosidade respondiam a todos os questionamentos. Contudo, essas explicações não davam mais conta de problemas, como a permanência, a mudança, a continuidade dos seres entre outras questões. Suas respostas perderam convencimento e não respondiam aos interesses da aristocracia que se estabelecia na pólis.
Dessa forma, determinadas condições históricas, do século V e IV a.C., como o estabelecimento da vida urbana na pólis grega, as expansões marítimas, a invenção da política e da moeda, do espaço público e da igualdade entre os cidadãos gestaram juntamente com alguma influência oriental uma nova modalidade de pensamento. Os gregos depuraram de tal forma o que apreenderam dos orientais, que até parece que criaram a própria cultura de forma original.
Podemos afirmar que a filosofia nasceu de um processo de superação do mito, numa busca por explicações racionais rigorosas e metódicas, condizentes com a vida política e social dos gregos antigos, bem como do melhoramento de alguns conhecimentos já existentes, adaptados e transformados em ciência.

O Mito de Édipo
Os mitos cumpriam uma função social moralizante de tal forma que essas narrativas ocupavam o imaginário dos cidadãos da pólis grega direcionando suas condutas. Na Atenas do século V a.C. existia também o espaço para as comédias que satirizavam os poderosos e personagens célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e prodígios dos heróis, bem como suas desventuras e fracassos. Haviam festivais em que os poetas e escritores competiam elegendo as melhores peças e textos, estes festivais eram muito importantes na vida da “pólis” grega, era por meio destes eventos sociais que as narrativas míticas se difundiam.

O soberano consulta o Oráculo, o que era comum na cultura grega antiga.
O Oráculo afirma que seu primogênito irá desposar a própria mãe e assassinar seu pai, o Rei Laio. Então, Laio manda que eliminem o menino, mas a pessoa encarregada não cumpre a ordem e envia o menino para um reino distante onde ele se torna um grande guerreiro e herói, numa de suas andanças ele encontra um homem arrogante e o mata; chegando ao Reino de Jocasta, Édipo se apaixona e a desposa. Anos mais tarde, Édipo descobre que ele próprio é o personagem da profecia, e num gesto de desespero, arranca os próprios olhos e sai a vagar pelo mundo a fora. A profecia se cumpriu, porque o rei se recusou a matar a criança.

Esta narrativa possui um fundo moral, o alerta para os desígnios dos deuses, que não devem ser contrariados, e o percurso de Édipo, de toda sua saga, de ter vencido a Esfinge e decifrado seu enigma, seu destino não o poupou. Contudo, um novo pensamento se formava e a vida na pólis cada vez mais é direcionada pela política, e aos poucos a moral estabelecida pelas narrativas míticas foram sendo substituídas pela ética e pelos valores da cidadania grega. O cidadão grego cada vez mais participativo não considerava a idéia de não controlar a própria vida. Na vida da pólis, os homens livres manifestavam suas posições escolhendo entre iguais o direcionamento das decisões e das ações da cidade-estado.


O Nascimento da Filosofia
O nascimento da filosofia pode ser entendido como o surgimento de uma nova ordem do pensamento, complementar ao mito, que era a forma de pensar dos gregos. Uma visão de mundo que se formou de um conjunto de narrativas contadas de geração a geração por séculos e que transmitiam aos jovens a experiência dos anciãos. Como narrativas, os mitos falavam de deuses e heróis de outros tempos e, dessa forma, misturavam a sabedoria e os procedimentos práticos do trabalho e da vida com a religião e as crenças mais antigas.
Nesse contexto, os mitos eram um modo de pensamento essencial à vida da comunidade, ao universo pleno de riquezas e complexidades que constituía a sua experiência. Enquanto narrativa oral, o mito era um modo de entender o mundo que foi sendo construído a cada nova narração.
As crenças que eles transmitiam ajudavam a comunidade a criar uma base de compreensão da realidade e um solo firme de certezas. Os mitos apresentavam uma religião politeísta, sem doutrina revelada, sem teoria escrita, isto é, um sistema religioso, sem corpo sacerdotal e sem livro sagrado, apenas concentrada na tradição oral, é isso que se entende por teogonia. Vale salientar que essas narrativas foram sistematizadas no século IX por Homero e por Hesíodo no século VII a.C.
Ao aliar crenças, religião, trabalho, poesia, os mitos traduziam o modo que o grego encontrava para expressar sua integração ao cosmos e à vida coletiva. Os gregos a partir do século V a.C. viveram uma experiência social que modificou a cotidianidade grega: a vivência do espaço público e da cidadania. A cidade constituía-se da união de seus membros para os quais tudo era comum. O sentimento que ligava os cidadãos entre si era a amizade, a filia, resultado de uma vida compartilhada.
A Vida Cotidiana na Sociedade Grega

Quando dizemos que a filosofia nasceu na Grécia, pontuamos que a Grécia do século V a.C. não possuía um Estado unificado, mas eraformada por Cidades-Estados independentes, as chamadas pólis, que foram o berço da política, da democracia e das ciências no ocidente.
Transformaram a matemática herdada dos orientais em aritmética, geometria, harmonia e lapidaram o conceito de razão como um pensar metódico, sistemático, regido por regras e leis universais.
Os gregos eram um povo comerciante, propensos a navegação e ao contato com outras civilizações. A filosofia nascera das adaptações que os pensadores gregos regimentaram aos conhecimentos adquiridos por meio dessas influências, e da superação do pensamento mitológico buscando racionalmente aliar essa nova ordem de pensamento propriamente grega, a vida na pólis. Mas afinal, o que é a pólis? Como se constituía?

Uma certa extensão territorial, nunca muito grande, continha uma cidade, onde havia o lar com o fogo sagrado, os templos, as repartições dos magistrados principais, a Ágora, onde se efetuavam as transações; e, habitualmente,
a cidadela na acrópole. A cidade vivia do seu território e a sua economia era essencialmente agrária. Competiam-lhe três espécies de atividade: legislativa, judiciária e administrativa. Não menores eram os deveres para com os deuses, pois a “pólis” assentava em bases religiosas e as cerimônias do culto eram ao mesmo tempo obrigações cívicas desempenhadas pelos magistrados. A sua constituição dependia da assembléia popular, do conselho, e dos tribunais formados pelos cidadãos. (PEREIRA, In: GOMES & FIGUEIREDO, 1983 p. 94 - 95)


O Mito e a Origem de Todas as Coisas

A multiplicidade de idéias e vertentes que formam o mito pode aparecer, muitas vezes, como desordem. A filosofia pode ser entendida como a tentativa de subordinar a multiplicidade de expressões à ordem racional, de enfrentar a dificuldade de entender os contrários misturados que povoam a vida. Entre mito e filosofia têm-se duas ordens ou duas concepções de mundo e a passagem da primeira à segunda expressa uma mudança estrutural da sociedade. Identificar ou pensar as várias ordens seria como identificar as constelações na imensidão do céu.
As narrativas míticas tentavam responder as questões fundamentais, como: a origem de todas as coisas, a condição do homem e suas relações com a natureza, com o outro e com o mundo, enfim, a vida e a morte, questões que a filosofia desenvolveu no decorrer de sua história. Mas aqui podemos formular outra questão: a filosofia nasceu da superação dos mitos, mas foi uma superação gradual ou um rompimento súbito? Para tanto, temos que primeiramente identificar algumas diferenças básicas entre os mitos e a filosofia.
O Mito (Mythos) é narrado pelo poeta-rapsodo, que escolhido pelos deuses transmitia o testemunho incontestável sobre a origem de todas as coisas, oriundas da relação sexual entre os deuses, gerando assim, tudo que existe e que existiu. Os mitos também narram o duelo entre as forças divinas que interferiam diretamente na vida dos homens, em suas guerras e no seu dia-a-dia, bem como explicava a origem dos castigos e dos males do mundo. Ou seja, a narrativa mítica é uma genealogia da origem das coisas a partir de lutas e alianças entre as forças que regem o universo.
A filosofia, por outro lado, trata de problematizar o porquê das coisas de maneira universal, isto é, na sua totalidade. Buscando estruturar explicações para a origem de tudo nos elementos naturais e primordiais (água, fogo, terra e ar) por meio de combinações e movimentos. Enquanto o mito está no campo do fantástico e do maravilhoso, a filosofia não admite contradição, exige lógica e coerência racional e a autoridade destes conceitos não advém do narrador como no mito, mas da razão humana, natural em todos os homens.


Numa Perspectiva Filosófica

Na origem da filosofia encontramos o mito e a poesia. Entre estas, as que chegaram até nós são as poesias de Homero e Hesíodo, que contam detalhes da vida das sociedades gregas antigas. Os mitos dos quais temos notícia são formas de narrativa oral sobre os tempos primordiais, isto é, sobre a origem ou a criação, é o modo como as sociedades arcaicas representavam coletivamente a geração de todas as coisas, isto é, a sua maneira de exprimir suas experiências.
É preciso esclarecer que os chamados primeiros filósofos oriundos da Jônia, mais ou menos no século IV a.C, foram também astrônomos, geômetras, matemáticos, médicos e físicos, isto é, as divisões do saber, as quais estamos acostumados, são modernas e não faziam parte do universo dos antigos. A distinção entre o que é a filosofia e o que é poesia, física, etc., é herança platônica.
Existem duas versões principais sobre a origem da filosofia: a versão mais conhecida é aquela que acentua o surgimento de uma metodologia nova de abordagem dos problemas no esforço de certos pensadores em explicar os fenômenos naturais com métodos que possibilitavam medir, verificar e prever os fenômenos. Nessa versão a filosofia ao nascer, opõe-se ao mito e o substitui, a partir de uma nova racionalidade.
A segunda versão diz que não houve um rompimento com o mito e a religiosidade dos antigos continuou a aparecer nas formas de conhecimento filosófico.

Não sabemos se os contemporâneos dos primeiros filósofos gregos acreditavam verdadeiramente que a Via Láctea era o leite espalhado pelo seio de Hera, mas quando Demócrito afirma que não se trata senão de uma concentração de estrelas, a maioria considera isso como uma blasfêmia. Quanto a Anaxágoras, que deu como certo ser o Sol um aglomerado de pedras, chegou mesmo a ter conflitos com os poderes públicos. É verdade que as doutrinas dos primeiros filósofos estavam ainda marcadas pela mitologia, mas isso não deve esconder-nos a sua orientação fundamentalmente antimitológica. (OIZERMAN, in: GOMES & FIGUEIREDO, 1983 p. 80 -81)

As duas respostas podem ser consideradas extremadas. A filosofiasurgiu gradualmente a partir da superação dos mitos, rompendo em parte com a teodicéia. Outras civilizações apresentaram alguma forma de pensamento filosófico, contudo, sempre ligado à tradição religiosa. A filosofia, por sua vez, abandona e supera a crença mítica e abraça a razão e a lógica como pressupostos básicos para o pensar. Então podemos dizer que a filosofia surgiu por meio da racionalização dos mitos, mas sob a influência dos conhecimentos adquiridos de outros povos gerando algo novo, ou seja, houve uma superação e transformação do antigo, gestando o novo de maneira diferente.
Mito e Lógos
Como as pesquisas atuais entendem o mito? Conforme Vernant
(2001) parece que os estudiosos do mito não conseguem definir seu objeto de estudo e o vêem desvanecer-se:

(...) o tempo de reflexão – esse olhar lançado para trás sobre o caminho
percorrido – não marcaria, para o mitólogo, o momento em que, acreditando
como Orfeu ter tirado sua Eurídice das trevas, impaciente de contemplála
na claridade da luz, ele se volta para vê-la desvanecer e desaparecer para
sempre a seus olhos? (VERNANT, 2001, p. 289)

Os mitólogos questionam a própria existência dos mitos, percebendo que, no mundo grego, “(...)eles existiram não pelo que eram em si, e sim como relação àquilo que, por uma razão ou outra, os excluíam e os negavam(...)”. (VERNANT, 2001, p. 289) Em outras palavras, o mito existe do ponto de vista de uma razão que pretende separar-se da narrativa oral e da religião. À medida que a razão filosófica constitui-se como método lógico de argumentação e discurso verdadeiro sobre o real, rejeita
“(...) o ilusório, o absurdo e o falacioso. Ele (o mito) é a sombra que toda forma de discurso verdadeiro projeta, por contraste, na hora em que a verdade não aparece mais como mensurável (...)” (VERNANT, 2001, p.291) e perde-se nas brumas da narrativa. É, portanto, ao discurso metódico que o mito deve a sua existência.


O Mito Hoje

Na modernidade, podemos pensar filosoficamente outros conceitos para o mito. Um dos modos de entender o mito é pensá-lo como fantasmagoria, isto é, aquilo que a sociedade imagina de si mesma a partir de uma aparência que acredita ser a realidade. Por exemplo: é mítica a idéia de progresso, porque é uma idéia que nos move e alimenta nossa ação, mas, na realidade não se concretiza. A sociedade moderna não progride no sentido que tudo o que é novo é absorvido para a manutenção e ampliação das estruturas do sistema capitalista. O progresso apresenta-se como um mito porque alimenta o nosso imaginário.
Boaventura, (2003), defende que todo conhecimento científico é socialmente construído, que o rigor da ciência tem limites inultrapassáveis e que sua pretensa objetividade não implica em neutralidade, daí resulta que acreditar que a ciência leva ao progresso e que o progresso e a história são de alguma forma linear, pode ser considerado como o mito moderno da cientificidade. Quando, ao procurarmos analisar a situação presente nas ciências no seu conjunto, olhamos para o passado, a primeira imagem é talvez a de que os progressos científicos dos últimos 30 anos são de uma ordem espetacular que os séculos que nos precederam não se aproximam em complexidade. Então juntamente com Rousseau (1712 - 1778) perguntamos: o progresso das ciências e das artes contribuirão para purificar ou para corromper os nossos costumes? Há uma relação entre ciência e virtude? Há uma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar pelo conhecimento científico?

Desde sempre o iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O programa do iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os mitos e anular a imaginação, por meio do saber. Bacon, “o pai da filosofia experimental” (cofr. Voltaire), já havia coligido as suas idéias diretrizes. (...) Apesar de alheio à matemática, Bacon, captou muito bem o espírito da ciência que se seguiu a ele. O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas, que ele tem em vista, é patriarcal: o entendimento, que venceu a superstição, deve ter voz de comando sobre a natureza desenfeitiçada. Na escravização da criatura ou na capacidade de oposição voluntária aos senhores do mundo, o saber que é poder não conhece limites. Esse saber serve aos empreendimentos de qualquer um, sem distinção de origem, assim como, na fábrica e no campo de batalha, está a serviço de todos os fins da economia burguesa. Os reis não dispõem sobre a técnica de maneira mais direta do que os comerciantes: o saber é tão democrático quanto o sistema econômico juntamente com o qual se desenvolve. A técnica é a essência desse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou imagens nem a felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho dos outros, o capital. (ADORNO e HORKHEIMER, 1975, p. 97-98)


O iluminismo partiu do pensamento de que a razão seria um instrumento capaz de iluminar a realidade, libertando os homens das trevas da ignorância, da ingenuidade da imaginação e do mito. O animismo, a magia e o fetichismo teriam sido finalmente superados e o mundo estaria livre desses flagelos. O entendimento e a razão assumiriam o comando sobre a natureza e transformar-se-iam em senhores absolutos e imperativos.
No entanto, o iluminismo não deu conta da tarefa que se propôs. Suas luzes não iluminaram tanto quanto se pretendia e a libertação do mito, do dogma e da magia medieval não teve o êxito afirmado por alguns autores. O iluminismo pretendeu retirar o mito e a fantasia de seu altar, mas colocou a razão e a técnica em seu lugar, logo, não derrubou o mito, apenas inverteu, dando à ciência e à técnica o brilho da “verdade”, gestando, assim, o mito moderno da racionalidade.
Para Nietzsche (1844 – 1900) o iluminismo não cumpriu o que se propôs a fazer. Não libertou os homens de seus prejuízos, os mitos não foram abandonados, mas substituídos por novos e mais elaborados heróis. O que pode ser tão escravizador quanto o dogma, isso porque a técnica e o saber científico podem estar a serviço do capital. Além disso, este saber técnico pode coisificar o homem e neste sentido os mitos modernos apresentam-se camuflados. Por isso, a crença na razão de forma absoluta gera um mito, o que caracterizaria um retrocesso no percurso do mito ao logos que, de certo modo, não era a intenção.

Mas enfim o que é o mito?

O pensamento mítico é por natureza uma explicação da realidade que não necessita de metodologia e rigor, enquanto que o logos caracteriza-se pela tentativa de dar resposta a esta mesma realidade, a partir de conceitos racionais. Mas existe razão nos mitos?
Não seria também a racionalidade, um mito moderno disfarçado? Assim como na antigüidade, o mito estava a serviço dos interesses da aristocracia rural e, portanto não interessava à aristocracia ateniense, surgindo assim o pensamento racional ligado à “pólis”, no mundo contemporâneo, não estariam o pensamento tecnicista e a ciência, a serviço do capital e das elites que financiam a produção do conhecimento científico?
O homem moderno continua ainda a mover-se em direção a um valor que o apaixona e só posteriormente é que busca explicitá-lo pela razão. Entende-se, pois, que o mito manifesta-se por meio de elementos figurativos, enquanto que o logos utiliza-se de elementos racionais, portanto é preciso deixar bem claro que não se pretende aqui colocar o pensamento racional no mesmo plano do pensamento mítico, mas sim, que a partir de uma releitura percebemos que o Iluminismo não deu conta nem mesmo de realizar a tarefa de que se propôs: iluminar as trevas da ignorância; quanto mais dissolver os mitos e anular a imaginação.


Referências:

ARAGON, L. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Editora Imago,
1996.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
GOMES, L. C.; FIGUEIREDO, Ilda. Antologia filosófica: a reflexão filosófica,
do mito à razão; dialética da acção e do conhecimento; valores
ético-políticos. Lisboa: Livros Horizonte, 1983.
HORKHEIMER, M. e ADORNO, T. W. Conceito de Iluminismo., São Paulo:
Pensadores, 1975.
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo, Cortez,
2003.
VERNANT, J. P. Entre Mito e Política. São Paulo: Editora da USP, 2001.
_________. Mito e Pensamento entre os gregos. São Paulo: Editora da
USP, 1973.
Imagem de abertura: Teseu – o herói de Atenas. 440-430 BC – Feito em
Atenas e encontrado na Itália – Lazio. www.thebritishmuseum.ac.uk

FILOSOFIA E MÉTODO

Anderson de Paula Borges

“Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã.”
(Chico Buarque, Cotidiano, 1971)
Na vida diária realizamos tantas tarefas e,muitas vezes, não percebemos que uma parcela significativa delas é feita com alguma metodologia. Considere, a título de exemplo, as atividades que o ser humano realiza diariamente: o ato de vestir-se, tomar banho, preparar a alimentação, amarrar o cadarço do sapato, etc. Esses procedimentos domésticos exigem método. Mas o que é método? Será que o trecho da música de Chico Buarque se refere a uma pessoa metódica? Que diferença há na ação de quem “segue um método” e de quem “faz tudo sempre igual”?

As Críticas de Aristóteles a Platão

A teoria do conhecimento se caracteriza por uma preocupação com
a busca de princípios gerais que permitam formular crenças verdadeiras
sobre a realidade. Essa idéia está presente na obra de Platão e é, em
larga medida, o que caracteriza também o pensamento de Aristóteles.
É com Aristóteles que a filosofia ganha uma consciência mais definida
acerca do método a ser adotado quando o assunto é o conhecimento.
Aristóteles contestou Platão porque via problemas em alguns pontos
da explicação platônica do conhecimento. Platão tinha chegado
numa tese importante: para haver conhecimento da realidade, é preciso
encontrar um caminho que dê acesso a idéias que sejam imutáveis,
que não sofram transformações decorrentes da interpretação ou do capricho.
Aristóteles concorda com isso, mas dirige uma crítica a Platão:
para garantir a certeza e validade do conhecimento não é necessário
postular uma teoria que duplique o real, isto é, que crie duas dimensões
na realidade: o sensível e o inteligível, como fez Platão.
Para entendermos bem a crítica de Aristóteles é necessário demorar-
se um pouco mais na teoria platônica que Aristóteles ataca: a chamada
“teoria das Formas.” Com efeito, em obras como República e
Fédon, Platão defende que o conhecimento só é alcançado quando
atingimos a “idéia” ou “conceito” do objeto. Platão utilizava, prioritariamente,
o termo “Forma” para referir-se a essa idéia. Por Forma Platão
entende um núcleo de características de um determinado objeto
ou realidade que mantém seus componentes independentemente dos
exemplares destes objetos encontrados no mundo ou na linguagem.
Um exemplo que nos ajuda a entender isso é pensar naquilo que
você compreende quando houve a palavra Justiça. Se relacionarmos o
que as pessoas entendem por justiça, teremos uma gama variada de
definições, muitas contraditórias entre si. Além disso, a própria aplicação
do conceito à realidade, no sentido de esforçar-se por ser justo,
não é condição suficiente para que saibamos exatamente o que é justiça.
Suponhamos que você diz que agir com justiça é devolver a alguém o
que lhe pertence (cf. República 331e-332c), e dá como exemplo a devolução,
ao dono, de uma arma que você encontrou. Alguém pode protestar
que teria sido mais racional e justo evitar a devolução, pois a arma
poderia ser usada para ferir alguém. É isso que preocupava Platão.
Muitas noções que temos sobre justiça e outros conceitos importantes
esfacelam-se diante de certas circunstâncias. Platão se perguntava se
não haveria um meio de evitar essa ambigüidade em que diferentes situações
exigirão de nós diferentes noções disto ou daquilo. Ele estava
consciente de que se não houvesse um modo de chegar a uma visão
unitária da justiça, jamais haveria possibilidade de entendermos a real
essência do conceito. Pior que isso, os que cometem crimes ou violência
teriam sempre à mão um argumento para justificar suas ações.

A importância vital das Formas vai muito além da República. Na concepção
platônica da filosofia, todas as inquirições em termos abstratos, que afinal
se destinam a informar a nossa visão do mundo não-abstrato, necessitam
de um objeto de estudo; as Formas oferecem algo de lúcido e real a
examinar, ao passo que o mundo físico, devido a sua ambigüidade, imperfeição
e corruptibilidade, é aparentemente insusceptível de estudo. Isto é,
compreender a justiça das leis do nosso mundo ou a beleza das pessoas
pressupõe um claro conhecimento especulativo da justiça e da beleza “em
si mesmas”. A questão continua a ser a compreensão deste mundo. Mas
o que é a justiça de uma lei e a de uma pessoa? Que estudamos realmente,
quando estudamos uma lei justa? Platão apela para as Formas: a “participação”
da Forma da Justiça, numa pessoa ou numa lei, torna justo quanto
exista nessa pessoa, nessa lei. Por outras palavras, tudo o que é justo, numa
pessoa ou numa lei, reflete as propriedades da Forma da Justiça, tal como
a massa de uma mesa e as propriedades dessa massa são realmente
a massa dos átomos constituintes. (PAPPAS, 1996)

Daí porque Platão defendia que, para um conjunto específico de
coisas como Justiça, Beleza, Conhecimento, Coragem, Igualdade, etc.,
deveria existir uma única Forma que desse sustentação ao pensamento
sobre essas coisas. Desse modo, ao aplicar o conceito de Justiça a
determinada realidade, no entendimento de Platão, estaríamos aplicando
o conhecimento do objeto aos casos particulares. Dito de outra
forma: não é porque uma cidade foi devastada que a população local
deve se unir e reconstruí-la novamente. Antes mesmo da devastação a
população deve saber que o que define a justiça é cada um fazer a sua
parte (cf. República, livro IV) com vistas ao bem comum. Desse modo,
no momento em que a cidade for arruinada não será necessário nenhum
esforço de conscientização para que uns ajudem os outros, uma
vez que aquela população já sabia agir assim bem antes do acontecimento
trágico.
Isto posto, voltemos às críticas de Aristóteles. Elas estão, sobretudo,
no capítulo 9 da Metafísica. Aristóteles critica vários pontos da teoria.
Vamos nos deter no núcleo comum de suas análises. A preocupação
de Aristóteles é que a teoria das Formas de Platão conduz a um tipo
bem particular de problema: ela torna o pensamento de um objeto independente
deste objeto, ou seja, faz pairar acima dos objetos conceitos
abstratos. Isso não é necessário, pensa Aristóteles. Ele concorda,
por exemplo, que a observação e comparação de diferentes tipos de
cavalo levam a um grupo de aspectos que definem o “conceito de cavalo”.
Isso só pode ser feito pelo pensamento. Mas Aristóteles não concorda
quando Platão imagina que existe algo abstrato e formal como
“a cavalidade”, independentemente da existência de cavalos particulares.
Para Aristóteles, chegamos ao conceito de cavalo mediante estudo
dos exemplares existentes, chegamos ao conceito de humanidade me-
diante estudo de homens concretos e assim por diante. Aristóteles se
pergunta: por que postular propriedades essenciais de cada objeto que
existam separadamente quando sabemos que conceitos, termos, palavras,
frases são produto do próprio pensamento e só existem enquanto
pensamento? Para Aristóteles um homem é mais real que a humanidade,
e é por meio do primeiro que chegamos ao conceito do segundo.

do particular ao geral: 1º movimento do entendimento

Numa obra chamada “Física” Aristóteles esclarece o passo do conhecimento:
“o percurso naturalmente vai desde o mais cognoscível e mais claro
para nós em direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza...”
(Física I,184a16-17)
Não é difícil entender o que Aristóteles está dizendo. Se você é um
especialista em teoria da relatividade e foi chamado para uma palestra
a um público que não entende coisa alguma de física, será melhor
iniciar sua fala por alguns exemplos triviais do cotidiano para cativar
o público e só então arriscar conceitos mais técnicos ou fórmulas. Em
outras palavras, você fará um caminho que vai do “particular” (o que
faz parte da experiência do público) ao “geral” (a visão de conjunto,
mais técnica e elaborada, sobre a qual você vai falar). A marcha do nosso
entendimento vai do simples ao complexo. Isso significa que compreendemos
melhor um assunto quando podemos fazer a passagem daquilo
que conhecemos para aquilo que desconhecemos. Observe como os
grandes oradores começam seus discursos por analogias ou casos que
a platéia logo se identifica.
No texto da “Física” Aristóteles dá o exemplo da criança para ilustrar
sua tese: inicialmente ela chama qualquer homem ou mulher de
pai e mãe. Só mais tarde aprenderá a identificar quem é pai e mãe, e
com o tempo formará um conceito de paternidade e maternidade. Há
aqui um curso do entendimento que vai do particular ao universal, fazendo
com que o conhecimento amplie-se. Aristóteles, que era considerado
um professor brilhante, já dominava em seu tempo noções de
psicologia e pedagogia para saber que ser humano algum adquire conhecimento
se não puder partir daquilo que já sabe.
do universal ao particular: 2º movimento do entendimento

Atenção: a regra anterior é absoluta no que toca ao aprendizado,
mas ela não diz tudo. O texto da Física também indica que o “claro”
para nós é, freqüentemente, um dado muito geral e simplista. O conhecimento
só é efetivo quando puder descer às minúcias. É isso que
Aristóteles quer dizer com “(...) mais claro e mais cognoscível para nós
em direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza”. A marcha é do que nós sabemos em direção ao que as coisas são de fato. Procure não fazer confusão sobre esse ponto. Essa é a razão pela qual os melhores alunos na escola são aqueles que desenvolvem o hábito de acompanhar os pontos principais do conteúdo. A regra de ouro é: compreenda os conceitos principais, mais gerais, só então se dedique ao estudo dos pontos particulares. Muitas vezes esses alunos são tomados por “inteligentes”, mas não é nada disso. Adquirir conhecimento é uma questão de saber como procede o aprendizado. Muitos que tiram os primeiros lugares nos vestibulares não dedicam mais do que 4 horas de estudo por dia no período de preparação, o que escandaliza os demais que no mesmo período chegam a estudar 10 horas por dia e não alcançam os mesmos resultados.


A Lógica Aristotélica

Os limites deste texto não permitem expor de forma detalhada muitos
pontos importantes da visão aristotélica do conhecimento. Mas não
poderíamos deixar de dizer uma palavrinha sobre a lógica aristotélica.
Antes de Aristóteles não houve nenhum filósofo que se preocupasse
com a formalização de regras que pudessem garantir a validade de raciocínios
e argumentos. Este é propriamente o objeto da lógica. Como
destaca Zingano (2002), para Aristóteles era mais desafiante encontrar
uma forma de organizar a massa de dados do conhecimento do que
propriamente reuní-los. Nesse sentido, Aristóteles percebeu que se fazia
necessária uma classificação dos conhecimentos: ele dividiu as ciências
em teóricas (matemática, física e metafísica), práticas (ética e política) e produtivas (agricultura, metalurgia, culinária, pintura, engenharia,
etc.). Mas o filósofo também concluiu que é fundamental estudar
o procedimento correto que deve orientar uma investigação em
qualquer destas áreas. Foi então que nasceu a lógica, conjunto de regras
formais que servem para ensinar a maneira adequada de se produzir
argumentos, raciocínios, proposições, frases e juízos.
Aristóteles em vida não pôde organizar sua obra. Essa tarefa ficou
a cargo de seus alunos. Os escritos que tratavam do raciocínio foram
reunidos num único volume que recebeu o título de Organon, literalmente
“instrumento”. O Organon é um conjunto de diferentes tratados
(exposição sistemática de um tema): Categorias, Tópicos, Dos Argumentos
Sofísticos, Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos e Da Interpretação.
Segundo o historiador da filosofia Giovanni Reale, Aristóteles sabia
que estava sendo pioneiro quando começou a estudar uma forma de
argumentação chamada silogismo. Por meio das análises que o filósofo
fazia de textos de sofistas, de Sócrates e do pensamento de Platão,
a lógica aristotélica:
(...)assinala o momento no qual o logos filosófico, depois de ter amadurecido
completamente através da estruturação de todos os problemas, como
vimos, torna-se capaz de pôr-se a si mesmo e ao próprio modo de proceder
como problema e assim, depois de ter aprendido a raciocinar, chega
a estabelecer o que é a própria razão, ou seja, como se raciocina, quando
e sobre o que é possível raciocinar. (REALE, 1994)
Aristóteles chegou num ponto em que não se tratava mais de desenvolver
conteúdos filosóficos, mas de examinar a forma como a razão
procede. Durante séculos a humanidade dependeu dos escritos de
Aristóteles para estudar áreas tão distintas como a física e a metafísica.
Ao ensinar os princípios básicos do pensamento, Aristóteles forneceu
à humanidade regras de argumentação que permanecem válidas ainda
hoje, sobretudo em domínios como a ética e a política.

O que caracteriza a lógica?
“Uma vez que a lógica não
é apenas argumento válido,
mas também reflexão sobre
os princípios da validade, esta
só aparecerá naturalmente
quando já existe à disposição
um corpo considerável de inferências
ou argumentos. A
investigação lógica, a de pura
narrativa, não é suscitada
por qualquer tipo de linguagem.
A linguagem literária,
por exemplo, não fornece suficiente
material de argumentos
e inferências. As investigações
em que se pretende
ou procura uma demonstração
é que naturalmente dão
origem à reflexão lógica, uma
vez que demonstrar uma proposição
é inferi-la validamente
de premissas verdadeiras.
“(KNEALE, 1991, p. 03)

Descartes e as Regras para
Bem Conduzir a Razão

Uma das obras mais fundamentais da filosofia chama-se Discurso
do Método e traz o seguinte subtítulo: “para bem conduzir sua razão
e buscar a verdade nas ciências”. Será que não é pretensão demais para
um texto escrito de forma autobiográfica? A trajetória do texto e o poder
que exerceu sobre a tradição posterior revelam que não. O Discurso
do Método é uma obra destinada, inicialmente, a servir de prefácio
a três ensaios do filósofo e matemático Descartes: a Dióptrica, os
Meteoros e a Geometria. Os dois primeiros só interessam hoje aos historiadores
do pensamento cartesiano. Já o terceiro teve ampla divulgação
entre os matemáticos, por razões que veremos mais tarde. Quanto
ao Discurso, dividido em seis partes, apesar de Descartes dizer que
seu propósito era apenas “(...) mostrar de que maneira ele se esforçou
para bem conduzir sua razão.” (Descartes, 1962) frase que devemos
atribuir à modéstia de Descartes, na verdade a obra expõe com clareza
uma série de argumentos que permitem à filosofia fundamentar todo
o edifício do saber.
Na segunda parte do Discurso, Descartes enumera quatro preceitos
que devem conduzir a ciência. Acompanhemos o texto do filósofo:

René Descartes (1596-1650).
O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que
eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente
a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que
não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu
não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir
cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas
possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro,
o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos
mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco, como por degraus,
até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma
ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último,
o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão
gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1962)
A primeira regra, também conhecida por “regra da evidência”, sintetiza
um ponto muito importante na filosofia cartesiana. Descartes entende
que a razão é uma capacidade que o homem possui para examinar
os dados que os sentidos captam. Nisto ele não se distingue de
filósofos anteriores. Mas, Descartes também pensa que a verdade e a
certeza são condições sem as quais um homem não pode dizer que possui conhecimento. O filósofo foi educado em La Flèche, uma escola
jesuíta que reunia o que havia de melhor em termos de Metafísica
e Teologia do século XVII. Por meio dessa instrução, Descartes pôde
exercitar-se durante anos em investigações metafísicas oriundas da
Idade Média cujas teses e argumentos são, em sua maior parte, raciocínios
prováveis. É contra esse tipo de procedimento que o método
cartesiano ganha força. Para Descartes é importante rejeitar todos os
juízos, demonstrações e dados que não possam ser tidos como verdadeiros
e indubitáveis. Quando Descartes recomenda a certeza ele pensa
naquela “luz natural” que cada homem possui, permitindo-lhe “intuir”
(no sentido preciso de ver) a verdade de cada coisa. Veja como o
filósofo delineia o método que orienta essa “visão mental”:
Todo método consiste inteiramente em ordenar e em agrupar os objetos
nos quais deveremos concentrar o nosso poder mental se pretendermos
descobrir alguma verdade. Seguiremos este método com exatidão se
desse início reduzirmos as questões complicadas e obscuras, substituindo-
as, passo a passo, por outras mais simples e depois, começando pela
intuição das mais simples de todas, tentarmos conhecer todas as outras,
através dos mesmos processos. (in: COTTINGHAM, 1989)
Você pode aplicar esse método no estudo de qualquer coisa, mas
não deixe de atentar para o seguinte: a mensagem de Descartes é que
sua razão segue um passo que vai do simples ao complexo por meio
de graus de entendimento na matéria. Além disso, o trecho acima revela
que o entendimento é uma espécie de visão mental, ou intuição,
termo redefinido por Descartes e cujo significado não pode ser confundido
com a tradição aristotélica. Em Descartes intuição é uma capacidade
análoga à faculdade da visão. A clareza que o entendimento
busca é uma capacidade de ver mentalmente as estruturas e qualidades
dos corpos existentes, do mesmo modo que a projeção de mais
luz sobre um corpo permite uma visão mais detalhada e precisa desse
corpo.
Segundo Granger, o espírito do cartesianismo é o espírito da matemática:
Dividir a dificuldade, ir do simples ao complexo, efetuar enumerações
completas, é o que observa rigorosamente o geômetra quando analisa um
problema em suas incógnitas, estabelece e resolve suas equações. A originalidade
de Descartes consiste em ter determinado, de forma por assim dizer
canônica, essas regras de manipulação que somente se esboçam em
seus contemporâneos na sua aplicação particular às grandezas, e de havêlas
ao mesmo tempo oposto e substituído à Lógica da Escola, na qual vê
apenas um instrumento de Retórica, inutilmente sofisticado. (DESCARTES, 1962)

Como se vê, o método cartesiano é uma projeção de princípios e
regras que orientam o raciocínio matemático-geométrico. A terceira e
quarta regras, respectivamente, apenas confirmam um procedimento
de resolução de problemas na geometria: as linhas e as figuras simples
estão contidas nas compostas, etc.
Vale ressaltar uma caracterização do conhecimento em Descartes
que podemos chamar de “unitária”. Talvez sem o saber, Descartes retoma
a opinião de Platão, para quem é possível identificar uma natureza
comum do conhecimento, e se põe contra Aristóteles nesse ponto,
o qual defendia a necessidade de distintas metodologias e perfis diferentes
para cada ramo do saber.

Filosofia e Matemática

Na escola você aprende que geometria significa, etimologicamente,
“medir a terra”. É uma definição que está na origem das noções geométricas,
quando egípcios e babilônios desenvolveram técnicas para
medir a extensão de rios, terras e observar o movimento dos astros.
Aos poucos essa noção rudimentar foi sendo aprimorada pelas matemáticas
dedutivas gregas que chegaram, até Euclides, num nível de
abstração bastante sofisticado.
Mas é no século XVII, quando o matemático Fermat (1601-1665) e
o próprio Descartes desenvolvem a álgebra, que a geometria dá um
passo decisivo rumo àquilo que é hoje. Os historiadores da matemática
divergem sobre o fato de Descartes e Fermat terem sido os reais pioneiros
da chamada “geometria analítica”. O certo é que na obra Geometria,
de 1637, na terceira parte, Descartes simplifica bastante o simbolismo usado pelas matemáticas anteriores. Como atesta Granger:

Para convencer-se disso, bastaria compará-lo com uma página da Álgebra
de Clavius, onde nenhuma equação é completamente formulada em
símbolos e onde signos cabalísticos representam as diversas potências da
coisa, isto é, da incógnita. (DESCARTES,1962)



Essa inovação deve-se à firmeza de Descartes em exigir uma clareza nas demonstrações matemáticas. A Geometria permitiu que Descartes estudasse a natureza do mundo físico pela ótica do pensamento matemático. O que Descartes mais apreciava na geometria é o poder que ela possui de rejeitar as “noções qualitativas indeterminadas em favor das de quantidades rigorosamente determinadas”. (COTTINGHAM, 1989)

A geometria analítica
Segundo o racionalismo de Descartes, o melhor caminho para a compreensão de um problema é a ordem e a clareza com que processamos nossas reflexões. Um problema sempre será mais bem compreendido se o dividirmos em uma série de pequenos problemas que serão analisados isoladamente do todo. Com intuito de ilustrar o alcance do método filosófico para o raciocínio e a busca da verdade, Descartes utilizou o terceiro apêndice de sua obra para a descrição de um tratado geométrico com os fundamentos daquilo que conhecemos hoje como geometria analítica.
Em essência, a geometria analítica pensada por Descartes seria uma tradução das operações algébricas em linguagem geométrica, e a essa nova forma de proceder segue uma enorme crença do autor no novo método como uma forma organizada e clara de resolver problemas de natureza geométrica.
Vejamos como a idéia central do método cartesiano está impregnada nos procedimentos de resolução do seguinte problema geométrico sem uso da fórmula de distância de ponto a reta: determinar a altura relativa ao vértice C do triângulo de vértices A(xa,ya), B(xb,yb) e C(xc,yc).

Dividiremos o problema em 5 problemas menores:

Primeira etapa: determinar a equação da reta que passa pelos pontos
A e B.

Segunda etapa: encontrar o coeficiente angular de uma reta perpendicular
à reta que passa por A e B.

Terceira etapa: determinar a equação da reta que passa por C e tem
o coeficiente angular igual ao encontrado na segunda etapa.

Quarta etapa: encontrar o ponto P de intersecção das retas da primeira
e terceira etapas.

Quinta etapa: calcular a distância entre os pontos P e C (a altura do triângulo).

“Sem dúvida, o projeto filosófico de Descartes trouxe inegáveis contribuições para o desenvolvimento da ciência de modo geral e da matemática em particular, contudo vale ressaltar que a fragmentação do conhecimento que dele decorre é um dos mais sérios problemas a serem enfrentados pelo homem contemporâneo.”

(José Luiz Pastore Mello, in: Folha Online - 26/12/2000)


Quando Descartes nasceu, em 1596, a Europa passava por uma revolução importante nas ciências. Galileu já usava em 1610 o telescópio para detectar as fases de Vênus e publicava, no mesmo ano, uma obra chamada O mensageiro das Estrelas na qual dava conta da descoberta de quatro satélites ao redor de Júpiter. Esse dado, conjugado com muitos outros, chocava-se com a astronomia ptolomaica, segundo a qual todos os astros giravam em torno da Terra. A Europa de Descartes ainda estava, no entanto, sob o efeito da longa tradição medieval que durante séculos valorizou os estudos teológicos em detrimento dos fenômenos naturais. O que teria levado a Igreja a retardar durante tanto tempo o avanço do conhecimento científico?
Segundo o físico e historiador da ciência Marcelo Gleiser, para se entender esse fato é preciso entender o contexto político que se formou desde o século IV d.C. Devemos lembrar que a Igreja sempre foi uma guardiã, no sentido literal, de todo o saber que foi transmitido pelos antigos.
Mas esse zelo também impedia que teorias modernas ganhassem espaço e ameaçassem o conhecimento tradicional. O pensamento cartesiano não deixa de se chocar com esse panorama. Sua física, por exemplo, diz que os dois principais conceitos do universo são “matéria” e “movimento”. Não há para Descartes, como havia para os teólogos católicos e aristotélicos, algum tipo de finalidade no mundo, ou seja, um sentido e função prévios definidos por alguma inteligência divina.
A biologia cartesiana também entra em conflito com a descrição medieval do homem. Para Descartes o corpo humano tem a estrutura de uma máquina, funcionando em perfeita harmonia como um relógio.
Para os medievais o que move o corpo é a alma, mas Descartes não aceita isso. Para ele o corpo deve ser explicado a partir de sua estrutura física: veias, sangue, circulação, cérebro, músculos, membros, etc. É uma revolução que deixou perplexa sua época. O corpo em Descartes deixava de ser um receptáculo do espírito para se tornar um mecanismo complexo ao alcance da compreensão e estudo humanos.




Referências

ANGIONI, L. Aristóteles – Cadernos de Tradução 1: Física livros I e II. Campinas:
IFCH-Unicamp, 2002.
COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes. Rio de Janeiro: Edições Setenta,
1989.
DESCARTES, R. Obra Escolhida. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1962.
FARIA, M. C. B. Aristóteles: a plenitude do Ser. São Paulo: Moderna,
1994.
GLEISER, M. A Dança do Universo: dos mitos da criação ao Big-Bang.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
IDE, P. A arte de Pensar. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ROSS, D. Aristóteles. Lisboa: Dom Quixote, 1987
ZINGANO, M. Platão e Aristóteles; os caminhos do conhecimento. São
Paulo: Odysseus, 2002.

Documentos consultados online:

BUARQUE, C. Cotidiano. Disponível em: http://chico-buarque.letras.terra.
com.br. Acesso: 15/03/2006.