Filosofia

Filosofia

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

SOCIOLOGIA E POLÍTICA

Ampliar a noção de política, enquanto um processo de tomada de decisões sobre
os problemas sociais que afetam a coletividade, permite ao aluno, por um lado,
perceber como o poder se evidencia também nas relações sociais cotidianas e nos
vários grupos sociais com os quais ele próprio se depara: a escola, a família, a
fábrica, etc. E por outro, dimensionar o erro de assumir uma postura que negue a
política enquanto uma prática socialmente válida, uma vez que no discurso do
senso comum ela é vista apenas como mera enganação. Até mesmo porque
negar a política seria contrariar a lógica da cidadania, que supõe a participação
nos diversos espaços da sociedade. (PCNEM, p. 323)

Conceitos
Política e relações de poder.
Estado e regimes políticos.
Democracia.
Cidadania e participação política.
Cotidiano.

MÓDULO – 2
Anexo - 1

O analfabeto político
Bertolt Brecht
O pior analfabeto
é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa
dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
o preço do feijão, do peixe, da farinha,
do aluguel, do sapato e do remédio
dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro
que se orgulha e estufa o peito
dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil
que da sua ignorância política
nascem a prostituta, o menor abandonado,
o assaltante e o pior de todos os bandidos,
que é o político vigarista, pilantra, corrupto
e lacaio das empresas nacionais e
multinacionais.
In Sonia M. Ribeiro de Souza, Um outro olhar: Filosofia, São Paulo, FTD, 1995, p.154.


ANEXO – 2

INTRODUÇÃO À POLÍTICA
Introdução
Na conversa diária, usamos a palavra política de diversas formas que não
se referem necessariamente a seu sentido fundamental. Assim, sugerimos a
alguém que seja “mais político” na sua maneira de agir, ou nos referimos à
“política” da empresa, da escola, da Igreja, enquanto formas de exercício e
disputa do poder interno. Podemos falar ainda do caráter político de um livro
de literatura, ou da arte em geral.
Mais próximo do sentido de política que nos interessa nesta Unidade,
sempre nos referimos à política quando tratamos de ciência, de moral e,
especificamente, de trabalho, lazer, quadrinhos, corpo, amor, etc. Embora
não se confunda com o objeto próprio de cada um desses assuntos, a política
permeia todos eles.
Há também o sentido pejorativo da política, dado pelas pessoas desencantadas
diante da corrupção e da violência, associando-a à “politicagem”,
falsa política em que predominam os interesses particulares sobre os coletivos.
Mas afinal, de que trata a política?
A política é a arte de governar, de gerir o destino da cidade.
Etimologicamente política vem de pólis (“cidade”, em grego).
Explicar em que consiste a política é outro problema, pois, se acompanharmos
o movimento da história, veremos que essa definição varia e toma
nuances as mais diferentes. O mesmo ocorre quando lembramos que o político
é aquele que atua na vida pública e é investido do poder de imprimir determinado
rumo à sociedade.
Múltiplos são os caminhos, se quisermos estabelecer a relação entre política
e poder, entre poder, força e violência; entre autoridade, coerção e persuasão;
entre Estado e governo etc. Por isso é complicado tratar de política
“em geral”. É preciso delimitar as áreas de discussão e situar as respostas
historicamente.
Assim, é possível entender a política como luta pelo poder: conquista,
manutenção e expansão do poder.
Ou refletir sobre as instituições políticas por meio das quais se exerce
o poder.
E também indagar sobre a origem, natureza e significação do poder. Nessa
última questão surgem problemas como: Qual é o fundamento do poder? Qual
é a sua legitimidade? É necessário que alguns mandem e outros obedeçam? O
que torna viável o poder de um sobre o outro? Qual é o critério de autoridade?
Abordaremos algumas dessas questões nos capítulos seguintes, à medida
que tratarmos dos problemas que preocupam os filósofos no correr da história.
Sugerimos consultar também o Capítulo 7 (Do mito à razão), onde nos
referimos ao surgimento da noção de cidadão na Grécia Antiga.

O poder
Discutir política é referir-se ao poder.
Embora haja inúmeras definições e interpretações a respeito do conceito
de poder, vamos considerá-lo aqui, genericamente, como sendo a capacidade
ou possibilidade de agir, de produzir efeitos desejados sobre indivíduos ou grupos
humanos. Portanto, o poder supõe dois pólos: o de quem exerce o poder e
o daquele sobre o qual o poder é exercido. Portanto, o poder é uma relação,
ou um conjunto de relações pelas quais indivíduos ou grupos interferem na
atividade de outros indivíduos ou grupos.

Poder e força
Para que alguém exerça o poder, é preciso que tenha força, entendida
como instrumento para o exercício do poder. Quando falamos em força, é
comum pensar-se imediatamente em força física, coerção, violência. Na verdade,
este é apenas um dos tipos de força.
Diz Gérard Lebrun: “Se, numa democracia, um partido tem peso político,
é porque tem força para mobilizar um certo número de eleitores. Se um sindicato
tem peso político, é porque tem força para deflagrar uma greve. Assim,
força não significa necessariamente a posse de meios violentos de coerção,
mas de meios que me permitam influir no comportamento de outra pessoa. A
força não é sempre (ou melhor, é rarissimamente) um revólver apontado para
alguém; pode ser o charme de um ser amado, quando me extorque alguma
decisão (uma relação amorosa é antes de mais nada uma relação de forças;
cf. as Ligações perigosas de Laclos). Em suma, a força é a canalização da
potência, é a sua determinação”.
M. Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Filosofando: introdução à Filosofia,
São Paulo, Moderna, 1993, p. 179-180.

ANEXO – 3

ESTADO E PODER
Entre tantas formas de força e poder, as que nos interessam aqui referemse
à política e, em especial, ao poder do Estado que, desde os tempos modernos,
se configura como a instância por excelência do exercício do poder político.
Na Idade Média certas atribuições podiam ser exercidas pelos nobres em
seus respectivos territórios, onde muitas vezes eram mais poderosos do que o
próprio rei. Além disso, era difícil, por exemplo, determinar qual a última instância
de uma decisão, daí os recursos serem dirigidos sem ordem hierárquica
tanto a reis e parlamentos como a papas, concílios ou imperadores.
A partir da Idade Moderna, com a formação das monarquias nacionais, o
Estado se fortalece e passa a significar a posse de um território em que o
comando sobre seus habitantes é feito a partir da centralização cada vez maior
do poder. Apenas o Estado se torna apto para fazer e aplicar as leis, recolher
impostos, ter um exército. A monopolização dos serviços essenciais para
garantia da ordem interna e externa exige o desenvolvimento do aparato administrativo
fundado em uma burocracia controladora.
Por isso, segundo Max Weber, o Estado moderno pode ser reconhecido
por dois elementos constitutivos: a presença do aparato administrativo para
prestação de serviços públicos e o monopólio legítimo da força.

O poder legítimo
Embora a força física seja uma condição necessária e exclusiva do Estado
para o funcionamento da ordem na sociedade, não é condição suficiente para a
manutenção do poder. Em outras palavras, o poder do Estado que apenas se
sustenta na força não pode durar. Para tanto, ele precisa ser legítimo, ou seja,
ter consentimento daqueles que obedecem. (Vimos que o poder é uma relação!)
Ao longo da história humana foram adotados os mais diversos princípios
de legitimidade do poder:
•nos Estados teocráticos, o poder considerado legítimo vem da vontade
de Deus ou da força da tradição, quando o poder é transmitido de geração em
geração, como nas monarquias hereditárias;
•nos governos aristocráticos apenas os melhores podem ter funções de mando;
é bom lembrar que os considerados melhores variam conforme o tipo de aristocracia:
os mais ricos, ou os mais fortes, ou os de linhagem nobre, ou, até, a elite do saber;
•na democracia, vem do consenso, da vontade do povo.
A discussão a respeito da legitimidade do poder é importante na medida
em que está ligada à questão de que a obediência é devida apenas ao comando
do poder legítimo, segundo o qual a obediência é voluntária, e portanto
livre. Caso contrário, surge o direito à resistência, que leva à turbulência social.
M. Lúcia de Arruda Aranha e M. Helena Pires Martins, Filosofando: introdução à Filosofia, São Paulo,
Moderna, 1993, p. 180-181.
ANEXO – 4

ANARQUISMO - INTRODUÇÃO HISTÓRICA
Tradição
Há uma grande confusão em torno da palavra anarquismo. Muitas vezes
a anarquia é considerada como um equivalente do caos e o anarquista é tido,
na melhor das hipóteses, como um niilista, um homem que abandonou todos
os princípios e, às vezes, até confundido com um terrorista inconseqüente.
Muitos anarquistas foram homens com princípios desenvolvidos; uma restrita
minoria realizou atos de violência que, em termos de destruição, nunca chegou
a competir com os líderes militares do passado ou com os cientistas nucleares
de hoje. Em outras palavras, neste estudo estarão presentes anarquistas
como foram e são, e não como aparentam ser nas fantasias de cartunistas,
jornalistas e políticos, cuja forma predileta de ofender um oponente é acusá-lo
de promover a anarquia.
Estamos interessados em definir um grupo de doutrinas e atitudes cuja
característica comum é a crença de que o Estado é nocivo e desnecessário. A
origem da palavra anarquismo envolve uma dupla raiz grega: archon, que significa
governante, e o prefixo an, que indica sem. Portanto, anarquia significa
estar ou viver sem governo. Por conseqüência, anarquismo é a doutrina que
prega que o Estado é a fonte da maior parte de nossos problemas sociais, e que
existem formas alternativas viáveis de organização voluntária. E, por definição,
o anarquista é o indivíduo que se propõe a criar uma sociedade sem Estado.
O conceito de sociedade sem Estado é essencial para a compreensão da
atitude anarquista. Rejeitando o Estado, o anarquista autêntico não está rejeitando
a idéia da existência da sociedade; ao contrário, sua visão da sociedade
como uma entidade viva se intensifica quando ele considera a abolição do Estado.
Na sua opinião, a estrutura piramidal imposta pelo Estado, com um poder
que vem de cima para baixo, só poderá ser substituída se a sociedade tornar-se
uma rede de relações voluntárias. A diferença entre uma sociedade estatal e
uma sociedade anárquica é a mesma que existe entre uma estrutura e um organismo:
enquanto uma é construída artificialmente, o outro cresce de acordo com
leis naturais. Metaforicamente, se pode comparar a pirâmide do Estado com a
esfera da sociedade que é mantida por um equilíbrio de forças. Duas formas de
equilíbrio têm muita importância na filosofia dos anarquistas. Uma delas é o
equilíbrio entre destruição e construção, que domina suas táticas. A outra é o
equilíbrio entre liberdade e ordem, que faz parte de sua visão da sociedade
ideal. Para o anarquista a ordem não é algo imposto de cima para baixo. É uma
ordem natural que se expressa pela autodisciplina e pela cooperação voluntária.
As raízes do pensamento anarquista são antigas. Doutrinas libertárias
que sustentavam que, como ser normal, o homem pode viver melhor sem ser
governado já existiam entre os filósofos da Grécia e da China Antiga, e entre
seitas cristãs heréticas da Idade Média. Filosofias cuidadosamente elaboradas e que eram totalmente anarquistas começaram a aparecer já durante o
Renascimento e a Reforma, entre os séculos XV e XVII, e principalmente no
século XVIII, à medida que se aproximava a época das revoluções Francesa e
Americana, que deram início à Idade Moderna.
Como movimento ativista, buscando mudar a sociedade por métodos
coletivos, o anarquismo pertence unicamente aos séculos XIX e XX. Houve
épocas em que milhares de operários e camponeses europeus e latino-americanos
seguiram as bandeiras negras ou rubro-negras dos anarquistas, revoltando-
se sob a sua liderança e estabelecendo modelos transitórios de um mundo
livre, como na Espanha e na Ucrânia durante períodos da revolução. Houve
também grandes escritores, como Shelley e Tolstoi, que expressaram idéias
essenciais do anarquismo em seus poemas, novelas e artigos. O sucesso do
anarquismo, porém, variou muito porque ele é um movimento e não um partido.
É um movimento que tem mostrado grande poder de renovação. No início
da década de 60, parecia estar esquecido, mas hoje parece ser outra vez,
como em 1870, 1890 e 1930, um fenômeno relevante.
George Woodcoch, Os grandes escritos anarquistas, Porto Alegre, L&PM, 1981, p. 13-14.

ANEXO – 5

Desobediência: a virtude original do homem
Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser
lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns
o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos,
descontentes, desobedientes e rebeldes – e têm razão. Consideram que a
caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola
sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por
parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir
gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar
sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quanto ao descontentamento,
qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e
o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.
Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que
a desobediência é a virtude original do homem. O progresso é uma conseqüência
da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem
econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a
comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente
imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue
viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar
ou fazer greve – o que para muitos é uma forma de roubo.
Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas
é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente,
rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade
e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará
uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter
pena deles mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o
inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também
extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as
leis que protegem a propriedade privada e admira que ela seja acumulada enquanto
for capaz de realizar alguma forma de atividade intelectual sob tais condições.
Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha
graças a essas leis possa ainda concordar com a sua continuidade.
Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza
são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a
natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência
de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e
mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. O que os patrões dizem sobre
os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoas
intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade
totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento
nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso
estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura na
América não foi uma conseqüência da ação direta dos escravos nem uma
expressão de seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta
totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares,
que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta
com o problema. Foram eles, sem dúvida, que começaram tudo. É curioso
observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material
e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos
descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome
livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação. Para o pensador,
o fato mais trágico da Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta
tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendér
tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.
Oscar Wilde, “The soul of man under socialism”, 1891, in George Woodcoch,
Os grandes escritos anarquistas, Porto Alegre, L&PM, 1981, p. 66-67.

ANEXO – 6

Por uma nova ordem simbólica
Cada espécie animal percebe o real segundo a vida que lhe é peculiar. A
espécie humana relaciona-se com ele por meio de seus sistemas simbólicos. E
é exatamente por esse motivo que ela é a única espécie que o pode transformar.
Mas, embora a capacidade de simbolizar seja inata, seu uso varia ao
longo dos tempos.
É pelos sistemas simbólicos que os seres humanos pensam, falam, se comunicam
e criam as suas leis de comportamento e, portanto, os seus sistemas
sociais, políticos e econômicos. Esses sistemas variaram muito nos 2 milhões de
anos de vida de nossa espécie, principalmente nos últimos 10 mil anos do nosso
período histórico. O grande erro dos pensadores foi tornar os sistemas, que
foram socialmente construídos, como biológicos e imutáveis.
Isso aconteceu, por exemplo, com os psicólogos do fim do século 19 e do
início do século 20, principalmente Freud e Lacan. Freud afirma que a natureza
foi madrasta com a mulher porque ela não tem a capacidade de simbolizar
como o homem.
Lacan afirma que o simbólico é masculino e que “a mulher não existe”.
Não existe porque não tem acesso à ordem simbólica. A palavra pertence ao
homem e o silêncio pertence à mulher. Segundo ele, o simbólico é estruturado
pela cadeia de significantes na qual o grande organizador é o falo. Este, ao
mesmo tempo, é metáfora do órgão sexual masculino e do poder. O poder – que
é essencialmente masculino – é o grande “outro”, ao qual, implícita ou explicitamente,
todos os atos simbólicos humanos se referem. Incluem-se aí os pensamentos,
os gestos, as leis e até os sistemas macro (políticos e econômicos).
E, de fato, ele tem razão. A realidade humana é gendrada (gendered),
como gendrados somos todos nós. Todos os sistemas simbólicos atuais foram
sendo fabricados pelos – e para os – homens. Leis, gramática, crenças, filosofia,
dinheiro, poder político e econômico.
Na última metade do século 20, no entanto, algo novo aconteceu. Os
dois grandes resultados da sociedade de consumo são a entrada da mulher no
mercado mundial de trabalho – uma vez que o sistema fez mais máquinas do
que machos – e a destruição dos recursos naturais – porque os retirou da
natureza num ritmo mais acelerado do que a capacidade de reposição dela.
As mulheres entram nos sistemas simbólicos masculinos no momento em
que esses estão se mostrando implacavelmente destrutivos em relação à vida.
A tarefa monumental que os movimentos de mulheres e as mulheres têm hoje
é a de construir uma nova ordem simbólica não mais centrada sobre o falo (o
poder, o matar ou morrer que é a sua lei), mas uma nova ordem que possa
permear desde o inconsciente individual até os sistemas macroeconômicos.
Uma nova ordem estruturada sobre a vida.
Essas reflexões não poderiam estar sendo feitas se esse trabalho já não
estivesse em curso. Já estão sendo construídos consensos entre os povos contra uma dominação global que exclui o grosso da humanidade e sobre uma
nova ordem que inclua uma relação complementar entre os gêneros, uma
família democrática, um tipo de relação econômica que não transfira a riqueza
de todos para os poucos que dominam, que inclua relações comerciais e econômicas
menos desumanas e destrutivas.
As mulheres já estão entrando nos sistemas simbólicos masculinos. E não
só nas instituições convencionais (empresas, partidos, etc.), mas também em
outras, muitas vezes na contramão da história (nas lutas populares, ecológicas,
pela paz etc., onde são a grande maioria). Elas estão construindo uma
nova ordem simbólica, na qual o “grande outro” é a vida (viver e deixar viver),
e ajudando a desconstruir a atual ordem universal de poder.
Se não trabalharmos nessa profundidade, por mais que se transformem
as estruturas econômicas antigas, elas tenderão a voltar. Ou substituímos a
função estruturante do falo pela função estruturante da vida ou não teremos
mais nem falo nem vida.
Rose Marie Muraro, in Folha de S. Paulo, 8/3/2001, p. A3.

ANEXO – 7

3 QUESTÕES SOBRE ECOLOGIA
[Parte I]
1. O atual movimento ecológico é uma nova forma de utopia política?
2. Ele não tende a priorizar a natureza em detrimento do homem?
3. O novo século será “ecologicamente correto”?
Luiz Felipe Pondé responde
1. Ecologia é política, quem não sabe isso acredita em Papai Noel. Como
utopia política, acho-a muito fraca. É uma ilusão acharmos que “vivemos todos
no mesmo planeta”. A natureza é social. Essa coisa de “we are the world”
só serve para “sermos sensíveis” enquanto morremos de fome e de dívidas. É
negar frontalmente toda a encarnação político-social da natureza que representa
a própria história humana. Uma forma de definirmos o Homo sapiens é
pela forma como se relaciona com a natureza e pelo modo como exerce seu
poder sobre seus semelhantes a partir dessa relação. Não há dúvida de que a
utopia ecológica serve muito bem como refúgio para o “bom mocismo” dos
incluídos: “Tudo bem, sou a favor da competição e da degradação das sociedades pobres (afinal isso é ‘natural!!!’), mas choro pelas ‘baby seals’”. É óbvio
que deve haver um projeto político que leve em conta o verde. Acho, aliás, que
um projeto de educação básica que inclua uma “formação ecológica” já é
grande coisa, mas para tal se faz necessário um projeto ambientalista que
inclua uma educação decente. Como utopia diet, uma de suas vantagens é
que seria uma utopia “bem-comportada”: quem grita nas ruas pelas baleias
provavelmente comeu antes.
2. Acho que sim. Mas acho que essa “escolha” em favor da natureza se dá
muito pelo fato de que, ao falarmos da “natureza”, parece que estamos tocando
em uma entidade “pura”, mas isso é platonismo para pseudoletrado. A escolha
pela “natureza” é proposital. É mais “limpo” ideologicamente defender a
natureza extirpando dela seu animal mais intratável. Por outro lado, há algo de
exato na natureza “biológica” que difere do homem, pois este é o animal indireto
por excelência. Para incluir o homem e a mulher no ambientalismo, temos que
aprender a praticar uma ecologia do “espaço interno”, respeitar essa coisa sutil
chamada “alma”, e isso é inviável no economicismo fajuto em que vivemos. No
caso do Brasil, diria que um projeto verde deveria levar em conta antes de tudo
a extinção do brasileiro e da brasileira.
3. Acredito que possa haver uma maior qualidade em alguns “trechos”
da biosfera. Na realidade já há discursos ecologicamente corretos, inclusive
entre nós, que habitamos esta parte “suja” do planeta: mais do que correto, é
“chique” ser ecologicamente correto, principalmente se for em supermercados
caros. O que preocupa é a possibilidade de que tudo isso vire “grife”: sem
a percepção de que não existe uma coisa chamada “natureza pura”, vamos
acabar pagando bem caro por morceguinhos fofinhos.
In Folha de S. Paulo, 18/2/01, Mais!, p. 3. Luiz Felipe Pondé é professor do programa de pósgraduação
em ciências da religião da PUC-SP e autor de Homem insuficiente.


ANEXO – 8

3 QUESTÕES SOBRE ECOLOGIA
[Parte II]
1. O atual movimento ecológico é uma nova forma de utopia política?
2. Ele não tende a priorizar a natureza em detrimento do homem?
3. O novo século será “ecologicamente correto”?
João Paulo Capobianco responde
1. Sim. As alterações promovidas pela humanidade nos ciclos ecológicos
globais ameaçam simultaneamente o futuro – crise da sobrevivência – e levam
ao questionamento de um dos principais pilares sobre os quais se construiu a
sociedade moderna: a supremacia da ciência e da tecnologia sobre os ideais, a
sensibilidade e os sentimentos humanos. Ao expor os gravíssimos problemas
ambientais, de que o efeito estufa é um dos mais fortes exemplos no momento,
o movimento ecológico coloca a humanidade diante de uma crise sem precedentes
e propõe mudanças radicais nos processos produtivos, nas formas de
apropriação dos recursos naturais e nos padrões de consumo. A viabilidade de
um novo modelo de desenvolvimento que seja socialmente justo e ecologicamente
viável, apresentado como a solução para esse impasse, exige a adoção
de posturas individuais e coletivas que contradizem o processo evolutivo recente
da humanidade. Sua implantação requer mudanças estruturais na sociedade,
que passam a ter um caráter de mudança civilizatória.
2. Há setores no movimento ecológico que insistem no modelo
preservacionista, que postula ser impossível compatibilizar o desenvolvimento
humano com a conservação do ambiente natural. Essa corrente, embora barulhenta,
está perdendo rapidamente espaço para os conservacionistas, que
consideram absolutamente indissociáveis as questões sociais e ambientais. Para
essa nova e mais influente corrente, a melhora da qualidade de vida das pessoas
é parte da luta pela conservação ambiental.
3. O novo século já se inicia mais “ecologicamente correto” do que o século
passado, mas será menos “ecologicamente correto” que o próximo. Isso porque
os conceitos sobre o que é adequado em termos ambientais evoluem rapidamente,
tornando as metas e planos cada vez mais ambiciosos. O caso da energia
nuclear é um bom exemplo. Nos anos 70, o movimento lutava para impedir a
construção de novas usinas nucleares. Menos de 20 anos depois de conquistar as
primeiras vitórias nesse sentido, a meta passou a ser a desativação das existentes.
Outras ações, como certificação ambiental de produtos florestais e agrícolas, comércio
solidário e consumo consciente, são alguns exemplos de novas estratégias
que passarão a definir o que será “ecologicamente correto” no futuro próximo.
In Folha de S. Paulo, 18/2/01, Mais!, p. 3. João Paulo Capobianco é biólogo, ambientalista e
coordenador do Instituto Socioambiental (organização não-governamental).

ANEXO – 9

É obrigatório ser de esquerda?
Com freqüência, as discussões sobre o que significa ser de esquerda hoje,
depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e de outros desmoronamentos
concomitantes, lembram muito as que escutamos sem cessar sobre como
manter as crenças religiosas em nossa época laica e científica. Fala-se em
teologia negativa, em leitura simbólica ou alegórica dos textos sagrados, no
Deus ou oculto, na volta às origens do cristianismo ou na sua simbiose com
doutrinas orientais, em rebeldia contra as Igrejas instituídas e hierárquicas, em
comunidades eclesiais de base. Defende-se a necessidade de uma teologia da
libertação, mas nunca se fala na necessidade de libertação da teologia. E o
ímpio vive assaltado pelo desejo de perguntar: “Mas por que é necessário
acreditar em Deus, de um modo ou de outro? Por que não podemos ser simplesmente
ateus como Deus manda?”.
Do mesmo modo, os debates sobre a esquerda possível ou desejável
sempre começam pela justificada renúncia a muitas coisas – ruins – que a
esquerda representou no século passado: a ditadura do proletariado, a luta
de classes como guerra civil revolucionária, a abolição do mercado e da propriedade
privada dos meios de produção, o planejamento estatal de objetivos
industriais, a nacionalização indiscriminada, o partido único, a ideologia
única (lembram-se daquela frase tão bonita que dizia Simone de Beauvoir:
“A verdade é una; o erro, múltiplo: nada estranha, portanto, que a direita
seja plural”?) etc. Quase ninguém é hoje partidário dessas genialidades de
resultado histórico atroz. Alguns até se esqueceram de que ainda ontem à
tarde professavam esses dogmas. Outros afirmam que tudo isso nunca foi “a
verdadeira esquerda” e tranqüilamente expulsam da esquerda Lênin, Stálin
ou Mao (com que autoridade?).
Mas muitos ainda consideram razoavelmente de esquerda Fidel Castro, Che
Guevara ou o regime hoje vigente na China comunista, apesar do horror que lhes
causaria ver gente assim governando seus confortáveis países europeus. Por aqui
acreditamos em mecanismos mais suaves de redistribuição e já basta defendermos
a previdência social, os impostos progressivos, a liberdade sindical e, claro, os
direitos humanos, isto é, quase tudo aquilo que até há bem pouco a esquerda
considerava mero “reformismo” ou “formalismo democrático”.
Na verdade, muitos partidos de centro ou de direita moderada também
subscrevem a seu modo esses ideais, portanto é difícil considerá-los inequívocos
traços distintivos da esquerda. Assim, continuamos discutindo, incansavelmente:
como há de ser a esquerda? Qual é a esquerda que queremos hoje, no
século 21? Mas ninguém se pergunta: por que queremos continuar sendo de
esquerda hoje, no século 21? Por acaso isso é obrigatório para salvar nossa
alma política ou a alma sem adjetivos?
Lamento, mas não tenho resposta para nenhuma dessas indagações. Só
me ocorrem considerações muito genéricas, talvez demasiado especulativas, mas que resumirei rapidamente, caso tenham algo a ver com a questão que nos
preocupa. Os seres humanos nascemos involuntariamente submetidos a uma
ordem social e política que nos preexiste, fruto de acasos, ambições e reformas
acumuladas durante séculos. Podemos sofrê-la passivamente, procurando não
nos dar pessoalmente muito mal nela, ou podemos buscar – na teoria e na prática
– o que fazer para que a ordem involuntária se torne voluntária, isto é, que
requisitos as instituições deveriam reunir para que a maioria dos humanos as
aceitassem e não apenas as padecessem. Obviamente, dada a finitude de nossa
vida e a escassez de nossos conhecimentos, qualquer transformação social nesse
sentido deverá necessariamente conservar muito para mudar pouco.
Mas que mudanças? Talvez pensar a gestão do mundo como uma questão
planetária, e não como a luta entre tribos hostis? Colocar as necessidades humanas
gerais como objetivo da economia, em lugar da maximização dos lucros? Impedir,
em escala mundial, a guerra, o racismo, a tortura, a fome, a marginalização
educacional, o abandono da infância à exploração e à violência dos adultos? Aspirar
a uma renda básica de cidadania, que suprima a coação da miséria e transforme
a maldição bíblica do trabalho em opção pessoal, segundo o tipo de vida que
cada um deseje levar? Não sei. Creio saber que existem coisas que vale a pena
tentar e outras não. Se tentar coisas que valem a pena é ser de esquerda, então
serei de esquerda. Mas, para dizer a verdade, isso pouco me importa.
Fernando Savater, in Folha de S. Paulo, 4/3/01, Mais!, p. 15.

ANEXO – 10

JUSTIÇA
Rumo à justiça ou à indignidade?
Se a essência da justiça, como sabido desde Aristóteles, encontra-se na
igualdade entre os homens, não é preciso grande esforço de previsão imaginativa
para perceber que o futuro da espécie humana tende a ser mais injusto
que o presente. A cada ano que passa, as cifras mundiais da desigualdade
crescem espantosamente.
Os dados coletados pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas
são acachapantes. Em 1960, os 20% mais ricos da população mundial
dispunham de uma renda média 30 vezes superior à dos 20% mais pobres. Em
1997, vale dizer, em menos de 40 anos, essa proporção havia mais do que
dobrado: 74 a 1. Se em 1987 a legião dos párias da Terra, ou seja, os condenados a viver com menos de um dólar por dia, cifrava-se em 880 milhões, atualmente
essa multidão de pobres-diabos já constitui uma formidável massa de
1,2 bilhão de pessoas, isto é, nada menos do que 20% da humanidade.
Uma desproporção comparável se desenvolve em termos de preponderância
militar. Nunca, em toda a história das civilizações, uma sociedade política
foi tão poderosa quanto os EUA o são hoje. O orçamento militar norte-americano
para 2001 é 12 vezes superior à soma de todos os demais orçamentos
do mundo.
Tio Sam tem hoje à sua disposição cerca de mil mísseis nucleares e conta
com 1,4 milhão de militares em serviço ativo, dos quais 250 mil estacionados
fora do território americano.
Ademais, a capacidade de espionagem dessa hiperpotência mundial não
tem precedentes. Graças ao concurso de vários satélites de transmissão, de
cerca de 100 mil espiões espalhados pelo mundo inteiro e de 50 mil especialistas
em informática, a Agência de Segurança Nacional americana chega a processar
em macrocomputadores nada menos do que 95% das telecomunicações
que se fazem, atualmente, nos mais diversos países.
Não escapa à análise do observador mais obtuso que essas duas realidades
estão visceralmente interligadas. O primeiro império verdadeiramente
mundial da história constitui a estrutura geopolítica da globalização capitalista.
Ora, após a devastação geral provocada pelo neoliberalismo triunfante,
firma-se, em todos os continentes, a convicção de que o capitalismo substitui,
aos poucos, o Estado totalitário como o principal adversário da democracia e
dos direitos humanos. Para suscitar a esperança é preciso, pois, urgentemente,
apontar à humanidade as vias de resistência a esse seu inimigo irreconciliável.
Elas passam por um esforço combinado de reconstrução, tanto na cúpula
quanto na base do edifício social.
Na cúpula, trata-se de instituir a supremacia do poder político sobre as
forças econômicas, tanto na esfera nacional quanto na internacional. Os diferentes
Estados nacionais foram sistematicamente desarticulados, ao mesmo
passo em que a autoridade da Organização das Nações Unidas vem sendo
minada. Há vários anos os Estados Unidos têm se recusado a pagar suas dívidas
à ONU, no evidente propósito de sufocá-la.
Felizmente, na base do edifício político, um número crescente de movimentos
e associações articula-se hoje, sob a coordenação da International Forum
on Globalization (http://www.ifg.org), para denunciar, nas ruas e praças de
todo o globo, a ação predatória e irresponsável do Fundo Monetário Internacional,
do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio. Em janeiro de
2001, ao mesmo tempo em que os patrões do mundo reunir-se-ão, como todos
os anos, em Davos (Suíça), Porto Alegre acolherá os participantes do primeiro
Fórum Social Mundial, a nova instância representativa da humanidade
pisoteada pelo poder capitalista.
O caminho que conduz à justiça é um só: fortalecimento do poder político, com efetiva participação e controle popular; a soberania dos povos (não
dos Estados nem, menos ainda, dos grandes grupos empresariais), com o integral
respeito aos direitos humanos. Em suma, a boa e verdadeira democracia.
Que o novo século se abra, pois, sob o impacto de uma nova convocação
geral: “Povos dominados do mundo inteiro, uni-vos!”.
Fábio Konder Comparato, in Folha de S. Paulo, 31/12/00, Mais!, p. 14.

DEMOCRACIA

Prever o futuro é tão arriscado que, podendo sempre errar, é preferível
errar pelo otimismo. E há boas razões para ser otimista quanto à democracia.
Nos últimos 20 anos, dobrou ou triplicou o número de pessoas que não vivem
em ditadura. Talvez seja demais chamar Ucrânia ou El Salvador hoje de Estados
democráticos, mas certamente há bem mais liberdade nesses países ou no
Brasil, após a queda do comunismo e das ditaduras apoiadas por Washington,
do que havia em 1980. A conjuntura mundial torna difícil o cenário usual, que
era – ante o avanço de reivindicações populares – a CIA (Central de Inteligência
norte-americana) ou o Exército Vermelho acabarem com a festa. No Brasil,
assim, se os militares se mantêm em paz nos quartéis, isso não decorre infelizmente
da força da sociedade, mas de um contexto internacional em que um
golpe de Estado deixaria os novos e ilegítimos mandatários enfraquecidos em
qualquer negociação externa.
Esse quadro geral de apaziguamento abre espaço para a expansão da
democracia. Não é casual que, mais uma campanha eleitoral avança, mais os
resultados favoreçam as forças progressistas. O Brasil do primeiro turno vota à
direita, o Brasil do segundo vota no centro e na esquerda. Em começo de
outubro dos anos pares premiamos os nostálgicos da ditadura e, no fim do
mês, consagramos as forças que se opuseram a ela, mesmo que hoje estejam
divididas entre PT e PSDB.
Mas resta muito por fazer. Mais que tudo, é preciso desenvolver a idéia
de que a democracia não é só um regime político, mas um regime de vida.
Quer dizer que o mundo dos afetos deve ser democratizado. É preciso democratizar
o amor, seja erótico, paternal ou filial, a amizade, o contato com o
desconhecido: tudo o que na modernidade fez parte da vida privada. É preciso
democratizar as relações de trabalho, hoje tuteladas pela propriedade privada. A democracia só vai se consolidar, o que pode tardar décadas, quando
passar das instituições eleitorais para a vida cotidiana. É claro que isso significa
mudar, e muito, o que significa democracia. Penso que cada vez mais ela terá
a ver com o respeito ao outro.
Respeitar o outro implica reconhecer que ele não precisa ser como nós e
aceitar sua diferença cultural, sexual, política, religiosa ou de valores, bem
como admitir que tenha as mesmas chances que nós de encontrar seu caminho
e de viver alimentado, vestido e saudável. É isso o que une a democracia
enquanto poder do povo, comprometida com o sufrágio universal e com a
justiça social, e enquanto conjunto de direitos humanos, empenhada pois em
reconhecer a cada um seu rumo pessoal.
Ainda é difícil saber o que significa essa proposta. Mas o fato é que,
apesar das circunstâncias atuais, a tendência de longo prazo parece ser a da
democratização. É nela que devemos apostar.
Renato Janine Ribeiro, in Folha de S. Paulo, 31/12/00, Mais!, p. 7

CULTURA E IDEOLOGIA

Os estudos de Sociologia devem incentivar a reflexão sobre os conceitos de
cultura, sistemas simbólicos e diversidades culturais, integrados aos conceitos
de ideologia, de indústria cultural e de meios de comunicação de massa,
com a finalidade de promover a construção e consolidação da cidadania
plena (garantindo as diversidades étnicas e estéticas e realizando a crítica do
consumismo).
Tempo previsto: 16 horas

Conceitos
Ideologia.
Cultura.
Cultura popular.
Cultura erudita.
Indústria cultural (cultura de massa).
Meios de comunicação de massa.
Consumismo.
Diversidade cultural.
Cotidiano.

ANEXO – 1

Após analisar as definições de ideologia e de cultura, vamos iniciar um novo
plano de reflexão, em que entram direta ou indiretamente em debate tanto o
conceito de cultura como o de ideologia. Estudaremos, agora, uma questão que
continua em discussão nas ciências sociais, que é a existência de duas formas
específicas de cultura em nossa sociedade: a cultura popular e a cultura erudita.
O que seria erudito? O que seria popular? O que distinguiria o popular do
erudito? A que grupo ou classe social poderíamos associar cada um desses
conceitos? Haveria algum critério de valor a separar esses conceitos, isto é,
seria possível ou correto compará-los e julgá-los?
O “popular” relaciona-se ao povo; o “erudito”, à elite (ou classe dominante,
se preferirmos). Essa seria, sem dúvida, a associação mais imediata a
ser feita com esses conceitos. Mas para fazer ou não essa associação é preciso
analisar os porquês daquela oposição inicial. Por que distinguir dois tipos de
cultura e dar a eles valores diferenciados?
A questão da existência de uma cultura popular versus uma cultura erudita
implica modos diferenciados de ser, pensar e agir, associados aos detentores de
uma ou de outra cultura. Falar em cultura popular significa falar, simultaneamente,
em religião, em arte, em ciência populares – sempre em oposição a um similar
erudito, que pode ser traduzido em dominante, dada a dimensão dicotômica
(dominante versus dominado) que caracteriza a sociedade capitalista.
Mas como defini-las e distingui-las? A pergunta permanece. Há autores,
como veremos adiante, que dizem já não ser possível pensar em cultura puramente
popular ou puramente erudita numa sociedade como a nossa, integrada
e padronizada pela cultura de massa, ou indústria cultural. Outros autores
discordam dessa postura, diferenciando não duas, mas três culturas, em constante
inter-relação: a cultura popular, a cultura erudita e a indústria cultural,
esta última muitas vezes atuando como uma espécie de ponte entre as duas
primeiras. Mas, por enquanto, tentemos nos fixar especificamente na discussão
ainda não resolvida, como já foi dito, referente à compreensão do erudito
e do popular na contraditória sociedade capitalista que vivemos.
Cultura erudita e cultura popular: o que são e quem as produz?
Definir cultura erudita aparentemente não ocasiona grandes problemas.
Ao pensarmos em cultura erudita, quase automaticamente a associamos ao plano
da escrita e da leitura, do saber universitário, dos debates, da teoria e do
pensamento científico. Já definir cultura popular não é assim tão simples. Na
verdade, definir cultura popular representa uma polêmica que cientistas sociais,
historiadores e pensadores da cultura em geral mantêm até hoje. E, se essa
polêmica ainda existe, é possível concluir que há várias definições de “popular”.
Ao pensarmos em cultura erudita, imediatamente concluímos que seus
produtores fazem parte de uma elite política, econômica e cultural que pode
ter acesso ao saber associado à escrita, aos livros, ao estudo. A resposta já não
é tão imediata quando perguntamos quem são os produtores da cultura popular. Mas afirmar que os produtores da cultura erudita fazem parte de uma elite
não significa dizer que essa cultura seja homogênea. Para os antropólogos
Gilberto Velho e Eduardo Viveiros de Castro, é impossível definir cultura erudita,
porque não podem ser homogeneizados os elementos culturais produzidos
por intelectuais, fazendeiros, empresários, burocratas, etc. Porém, é igualmente
impossível definir cultura popular, dadas as produções culturais diferenciadas
de camponeses, operários, classes médias baixas, etc.
De qualquer forma, não podemos perder de vista que o espaço reservado
na sociedade para cada uma das duas culturas é bastante diferenciado.
Enquanto a cultura erudita é transmitida pela escola e confirmada pelas instituições
(governo, religião, economia), existe uma outra cultura que não se encontra
nos esquemas oficiais. Mas onde está essa cultura? Para descobrir o
seu lugar, pensemos nas definições que os estudiosos têm dado ao conceito de
cultura popular. O historiador inglês Peter Burke define a cultura popular como
uma cultura não oficial, do povo comum. Nesse sentido, o autor segue o pensamento
de Antonio Gramsci, para quem a cultura popular é a cultura do povo,
e os seus produtores são as classes subalternas. Para Gramsci, a cultura popular,
por ser ligada à tradição, é conservadora. No entanto, por ser capaz de
incorporar e reconstruir novos elementos culturais, é também inovadora.
Segundo o antropólogo brasileiro Carlos Brandão, quem faz cultura popular
ou folclore (voltaremos mais tarde a esse conceito) nem sequer imagina
que o que faz tem um outro nome, tem uma ou outra definição, causa ou não
causa polêmicas entre intelectuais. As populações que os estudiosos aproximariam
do conceito e da prática da cultura popular (ou do folclore) vivem, têm
suas atividades cotidianas, divertem-se, têm suas maneiras de ver o mundo e
entender a vida, cantam, dançam, sentem e trabalham. Essas coisas seriam
cultura popular? Essas coisas seriam folclore, ou, como Brandão ouviu em suas
andanças pelo interior do Brasil, “focrore”?
Além disso, talvez seja importante refletir sobre mais uma última questão:
que pessoas se interessam por essas definições? E aqui a resposta é rápida: mais
do que aos próprios produtores da chamada cultura popular, essas questões interessam
aos estudiosos, que, por sinal, numa associação mais imediata, seriam associados
à elite e à esfera da cultura erudita, já que lêem, escrevem e debatem.
Cultura popular e cultura erudita: conflito e incorporação
A questão presente em todos esses movimentos culturais, dos mais antigos
aos mais recentes, refere-se à real definição do popular e do erudito. Se o
popular fosse considerado exclusivamente como tradição e, portanto, como
algo a ser conservado e protegido, introduzir guitarras elétricas no que se
convencionou chamar de “música popular brasileira” seria inaceitável (e, de
fato, isso causou escândalo na década de 60, quando o Tropicalismo e mesmo
a Jovem Guarda de Roberto Carlos surgiram – e com eles, as guitarras, os
cabelos compridos, as calças apertadas).
Se, por outro lado, o erudito significasse somente aquilo a que se
convencionou chamar de “belas-artes”, música e teatro clássicos, não se poderia
pensar na transcrição para a linguagem plástica, escrita e musical de
imagens, poemas e canções do folclore (e estes, por sua vez, só seriam folclore,
ou cultura popular, se fossem passados oralmente, de pai para filho, sem
alterações, ao longo dos séculos).
Como sabemos, nada disso acontece. Numa sociedade complexa como
esta em que vivemos, não é possível ignorar as inter-relações estabelecidas
entre a cultura erudita e a cultura popular e sua importância no próprio estabelecimento
e manutenção da sociedade. A cultura erudita procura compreender
e incorporar elementos da cultura popular (segundo muitos autores até
para melhor dominá-la). Isso não significa, porém, que a cultura popular não
resista a essa incorporação e não incorpore e reelabore, ela mesma, elementos
tradicionalmente associados à cultura erudita.
Para compreender todas essas inter-relações é preciso pensar que todos os
elementos enumerados no início do item “Cultura popular e cultura erudita no
Brasil” – festas, literatura, culinária, religião, etc. – trazem em si a organização
político-econômico-cultural do país, suas regras, suas contradições. Apesar de
estarem associados imediatamente a uma certa visão do povo e da cultura
popular brasileira, da elite e da cultura erudita, esses elementos não são necessariamente
harmoniosos nem estão parados no tempo. Ao contrário, vão se
transformando, ao longo da história e das relações sociais, num movimento dinâmico
e incessante que é o que caracteriza o ser humano e a vida em sociedade.
Para ilustrar, poderíamos utilizar o exemplo da feijoada. Com o passar do
tempo, ela deixou de ser comida de escravos e passou a ser um símbolo de
nacionalidade, sendo servida não só nos restaurantes simples como nos requintados.
Para compreender a cultura e seus significados, é necessário acompanhar
as etapas de transformação de seus elementos, como no exemplo da
feijoada, e tentar descobrir as suas causas.
Existe uma tendência a se considerar tudo aquilo que se relaciona com a
cultura popular como algo antigo, ultrapassado, que precisa acabar e dar lugar
ao novo, ao moderno (em geral associado ao erudito). Curiosamente, muito do
que se convencionou chamar de velho e ultrapassado é associado também à
identidade nacional, isto é, àqueles elementos que fazem com que uma determinada
população se identifique como um grupo de pessoas possuidor dos
mesmos interesses, objetivos e visão de mundo; em resumo, que se identifique
como nação. Esses elementos, se por um lado reforçam a identidade, por outro
acabam estimulando a padronização de gostos, interesses e necessidades,
fazendo com que as pessoas se esqueçam de que vivem em uma sociedade
por definição contraditória, já que dividida em classes.
A indústria cultural vai ser um elemento-chave para pensarmos nessas questões.
Nelson Dácio Tomazi, Iniciação à Sociologia, São Paulo, Atual, 1993, p. 179-182, 190-191.

Anexo - 2

Cultura de massa ou indústria cultural
Entre os autores preocupados em definir a indústria cultural ou cultura de
massa e compreender o seu papel na sociedade atual, existem posições diferentes
e até opostas. De maneira breve, examinemos algumas visões sobre a questão.
O termo indústria cultural foi criado por Theodor Adorno (1903-1969) e
Max Horkheimer (1895-1973), membros de um grupo de filósofos conhecido
como Escola de Frankfurt. Ao fazerem a análise da atuação dos meios de
comunicação de massa (que a partir de agora serão chamados pela sigla mdcm),
esses autores concluíram que eles funcionavam como uma verdadeira indústria
de produtos culturais, visando exclusivamente ao consumo. Conforme Adorno,
a indústria cultural vende mercadorias, mas, mais do que isso, vende imagens
do mundo e faz propaganda deste mundo tal qual ele é e para que ele
assim permaneça.
Segundo os dois autores, a indústria cultural pretenderia integrar os consumidores
das mercadorias culturais, agindo como uma ponte nociva entre a
cultura erudita e a popular. Nociva porque retiraria a seriedade da primeira e a
autenticidade da segunda. Adorno e Horkheimer vêem a indústria cultural como
qualquer indústria, organizada em função de um público-massa (abstrato e
homogeneizado) e baseada nos princípios da lucratividade.
Poderíamos pensar, a partir do que os autores indicam, que a indústria
cultural venderia mercadorias culturais como pasta de dentes ou automóveis,
e o público receberia esses “produtos” sem saber diferenciá-los ou sem questionar
seu conteúdo. Assim, após uma sinfonia de Beethoven, uma estação de
rádio poderia veicular o anúncio de um restaurante e, depois dele, noticiar um
golpe de Estado ou terremoto, sem nenhuma profundidade, sem nenhuma
discussão. Nesse sentido, é preciso observar como essa sucessão de música,
propaganda e notícia ilustra o caráter fragmentário dos mdcm, principalmente
o rádio e a televisão (esta, por sinal, profundamente criticada por Adorno).
Os meios tecnológicos tornaram possível reproduzir obras de arte em escala
industrial. Para os autores, essa produção em série (por exemplo, os discos
de música clássica, as reproduções de pinturas, a música erudita como pano
de fundo de filmes de cinema) não democratizou a arte. Simplesmente, banalizou-
a, descaracterizou-a, fazendo com que o público perdesse o senso crítico
e se tornasse um consumidor passivo de todas as mercadorias anunciadas pelos
mdcm. Nesse caso, o fato de um operário assobiar, durante o seu trabalho,
um trecho da ópera que ouviu no rádio não significaria que ele estaria compreendendo
a profundidade daquela obra de arte, mas apenas que ele a memorizou,
como faria com qualquer canção sertaneja, romântica, ou mesmo um
jingle que ouvisse no mesmo rádio.
Para Adorno, a indústria cultural tem como único objetivo a dependência
e a alienação dos homens. Ao maquiar o mundo nos anúncios que veicula, ela
acaba seduzindo as massas para o consumo das mercadorias culturais, a fim de que elas se esqueçam da exploração que sofrem nas relações de produção.
A indústria cultural estimularia, portanto, o imobilismo.
Ao contrário de Adorno e Horkheimer, Marshall McLuhan (1911-1980)
via a atuação dos mdcm de maneira otimista. Estudando principalmente a televisão,
o autor acreditava que ela poderia aproximar os homens, diminuindo
as distâncias não apenas territoriais como sociais entre eles. O mundo iria transformar-
se, então, numa espécie de “aldeia global”, expressão que acabou ficando
clássica entre os teóricos da comunicação.
O crítico Umberto Eco, por sua vez, faz uma distinção polêmica entre os
autores dedicados ao estudo da indústria cultural. Segundo ele, esses autores
dividem-se entre “apocalípticos” (aqueles que criticam os meios de comunicação
de massa) e “integrados” (aqueles que os elogiam). Entre os motivos para
criticar os mdcm, segundo os “apocalípticos”, estariam:
•a veiculação que eles realizam de uma cultura homogênea (que
desconsidera diferenças culturais e padroniza o público);
•o seu desestímulo à sensibilidade;
•o estímulo publicitário (criando, junto ao público, novas necessidades de
consumo);
•a sua definição como simples lazer e entretenimento, desestimulando o
público a pensar, tornando-o passivo e conformista.
Nesse sentido, os mdcm seriam usados para fins de controle e manutenção
da sociedade capitalista.
Entre os motivos para elogiar os mdcm, apontados pelos “integrados”,
estariam:
•serem os mdcm a única fonte de informação possível a uma parcela da
população que sempre esteve distante das informações;
•as informações veiculadas por eles poderem contribuir para a própria
formação intelectual do público;
•a padronização de gosto gerada por eles funcionar como um elemento
unificador das sensibilidades dos diferentes grupos.
Nesse sentido, os mdcm não seriam característicos apenas da sociedade
capitalista, mas de toda sociedade democrática.
Eco irá criticar as duas concepções. Os “apocalípticos” estariam equivocados
por considerarem a cultura de massa ruim simplesmente por seu caráter
industrial. Para Eco, não se pode ignorar que a sociedade atual é industrial e
que as questões culturais têm que ser pensadas a partir dessa constatação. Os
“integrados”, por sua vez, estariam errados por esquecerem que normalmente
a cultura de massa é produzida por grupos de poder econômico com fins
lucrativos, o que significa a tentativa de manutenção dos interesses desses
grupos através dos próprios mdcm. Além disso, não é pelo fato de veicular
produtos culturais que a cultura de massa deva ser considerada naturalmente
boa, como querem os “integrados”.
Eco acredita que não se pode pensar a sociedade moderna sem os mdcm.
Nesse sentido, sua preocupação é descobrir que tipo de ação cultural deve ser
estimulado para que os mdcm realmente veiculem valores culturais.
Nesse sentido, o papel dos intelectuais será fundamental, pois eles é que
irão fiscalizar e exigir que isso aconteça.
Outro autor também ligado à Escola de Frankfurt, mas com uma concepção
diferente do papel da indústria cultural, é Walter Benjamin (1886-1940).
Para ele, a revolução tecnológica do final do século XIX e início do século XX
não acabou com a cultura erudita, como pensavam Adorno e Horkheimer, mas
alterou o papel da arte e da cultura. Os mdcm e suas novas formas de produção
cultural propiciaram mudanças na percepção e na assimilação do público
consumidor, podendo, inclusive, gerar novas formas de mobilização e contestação
por parte desse público.
Para Benjamin, a possibilidade de reprodução técnica das obras de arte
retirou delas o seu caráter único e mágico (o que ele chama de sua “aura”).
Em compensação, possibilitou que elas saíssem dos palácios e museus e fossem
conhecidas por um número infinito de pessoas. Por exemplo, a reprodução
fotográfica permitiu que qualquer pessoa pudesse ter em sua sala as clássicas
Monalisa e Santa ceia, de Leonardo da Vinci; a reprodução fonográfica
fez com que muito mais pessoas pudessem escutar (e quantas vezes quisessem)
uma sinfonia de Mozart.
O impacto que a indústria cultural moderna pode provocar no público
consumidor não seria, portanto, necessariamente negativo, podendo, ao contrário,
contribuir para a emancipação desse público e para a melhoria da sociedade,
uma vez que ampliaria o seu horizonte de conhecimento.
Muitos críticos consideram a visão de Adorno e Horkheimer sobre a indústria
cultural conservadora. Segundo eles, a posição desses autores, ao dizerem
que a indústria cultural banalizaria a cultura erudita (que eles denominavam
“alta cultura”), seria de valorizar a cultura burguesa. E não apenas isso,
seria também de depreciar a cultura popular, que, segundo eles, ficaria ainda
mais simplificada no âmbito da indústria cultural, e a própria capacidade crítica
do público, considerado mero consumidor de mercadorias culturais, produzidas
industrialmente.
Essas diferentes visões sobre a indústria cultural, expostas de maneira
simplificada, poderão servir como elementos para refletirmos sobre a questão
da indústria cultural no Brasil.
Nelson Dácio Tomazi, Iniciação à Sociologia, São Paulo, Atual, 1993.

ANEXO - 3

3 QUESTÕES SOBRE CONSUMISMO
1. Como definir o comportamento consumista?
2. Quais são suas causas?
3. O consumismo pode ser terapêutico?
Ana Verônica Mautner responde
1. Comportamento consumista está associado, em primeiro lugar, à idéia
de exagero e também à condição de insaciabilidade. O sujeito quer mais, sempre
mais. Nessa etapa do processo ocorre uma mudança qualitativa. Ele deixa de
apenas querer para querer exibir. Não se trata de exibir o que comprou. A exibição
está no ato da troca, que culmina na aquisição. É no ato de conseguir a
posse do bem, ou coisa, que encontramos a gratificação máxima do consumista.
A questão, pois, reside no tema do poder. Eu quero (peço, encomendo, tomo).
Pago e depois levo. Resumindo, diria que o comportamento consumista se caracteriza
por uma insaciável necessidade de exibir poder. Às vezes o que se
adquire é colecionado ou consumido ou distribuído ou simplesmente guardado.
De qualquer forma, a negociação, a troca, contém o “gozo” que mantém o
comportamento que psicólogos enquadram na categoria de compulsivo: o prazer
no ato da compra é a gratificação que mantém o comportamento consumista.
2. A mobilidade social, característica essencial do mundo moderno, exige
dos membros da sociedade uma flexibilidade que nem sempre conseguimos.
Nessa questão, crises egóicas de poder fluem para o consumo. Daí até que o
ato de comprar sobrepuje a necessidade de ter é menos do que um passo. “O
que” e “como” consumimos tornam-se nosso cartão de visita. O ato de comprar
é, nesse contexto, elemento volátil na formação da identidade.
3. O comportamento consumista enquanto fator de formação de identidade
exerce o mesmo tipo de terapia que os remédios anestésicos: dá um descanso
ao sofredor. Diminui a dor psíquica que sentimos quando elementos identificatórios
não estão definidos. Quando a intolerância à dor atinge formas patológicas, seu
uso deixa de ser terapêutico para tornar-se o causador de outras dores. É como a
aspirina, que, tomada em excesso, dá azia. Comportamento consumista cria conflitos
no lar, gera dívidas, juros e outros tantos inconvenientes. O comportamento
consumista pode ser visto, pois, como uma das tentativas de que dispomos para
driblar a sensação de impotência que a forma de organização da sociedade moderna
(massa de indivíduos à procura de individuação) gera em seus membros.
Everardo Rocha responde
1. O consumo, na sociedade moderna, se liberta dos limites da tradição
para se tornar um princípio fundamental, isto é, um sistema que, para
além de saciar “necessidades” biológicas ou econômicas, serve a que os indivíduos estabeleçam semelhanças e diferenças entre si. A chamada “sociedade
de consumo” nasce de um longo processo histórico, que envolve
marcos como a corte elisabetana (século 16), o romantismo (século 18 e
início do 19) e os meios de comunicação de massa (séculos 19 e 20); em si
mesmo, tal modelo não é um mal, e sim uma “linguagem”, que visa a singularizar
“indivíduos” em princípio igualados (pela democracia e o mercado).
O mal está na apropriação indébita dessa linguagem – que podemos
chamar de “consumismo”.
2. Nesse caso, o “consumo, logo comunico” dá lugar ao “consumo,
logo existo”, e a pessoa vê a si própria e todos os valores reduzidos à
compulsão e ao sofrimento de “possuir” sempre mais. Esquecemos, assim
– vide nossos festejos de Natal –, o que as festas primitivas (“kula”) tinham
como postulado básico: o ato de trocar, a “relação”, vale mais que as coisas
dadas ou recebidas.
Como sugeri na resposta anterior, a atitude consumista é uma
distorção, uma apropriação perversa das modernas regras de sociabilidade.
Não vejo, por exemplo, na mídia o poder de manipulação suficiente
para que fosse julgada “a responsável” por esse comportamento. Creio,
antes, que o consumismo é uma variante exacerbada da sociedade de
consumo, que se pode identificar em personagens como a protagonista
de “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert, ou James Bond, cujas
roupas, bebidas, mulheres, cigarros transmitiam o ideário “american way”
do período da Guerra Fria.
3. A pessoa que se separou e sai para as compras não resolverá, com
isso, seu problema interno – ao contrário do que crê o consumista –, mas poderá
ritualizar a tristeza, do mesmo modo como, antigamente, a roupa preta
sinalizava a entrada e saída no período de luto: nos dois casos, o consumo
ajuda à expressão de um outro olhar. Nesse sentido, consumir é terapêutico,
assim como o é para o amigo que, dando um presente ao outro, exprime e
reforça esse vínculo.
In Folha de S. Paulo, 17/12/00, Mais!, p. 3.
Ana Verônica Mautner é psicanalista e escritora, autora de Crônicas científicas;
Everardo Rocha é antropólogo e professor de Comunicação Social na PUC-RJ,
autor de A sociedade do sonho.

Módulo 3
Anexo- 4

Tigrão, a Febem e nós

SÃO PAULO - Não houve ontem, ao que consta, nenhuma morte, nenhuma
rebelião na Febem, a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (sic). Na
falta de notícia mais emocionante, programas de TV dedicados à “família brasileira”
devem tê-la divertido com o funk do Tigrão.
O fenômeno musical (?) da vez, oriundo do Rio, chegou aos bolsões ricos de
São Paulo. Tchutchuquinhas dos Jardins e da Vila Olímpia (bairro novo-rico da capital
que explica por que Maluf é possível) imitam as “minas” da Cidade de Deus,
boca quente do crime no Rio. Repetem sorrindo que “um tapinha não dói”.
A anomia da periferia se integra ao Brasil legal pela mídia, na forma de espetáculo.
A violência temperada com sexo, à Gilberto Freyre, que todos consomem
como diversão pela TV, é regularmente intercalada com o show de horror ao vivo
da Febem. A convivência das duas coisas explica muito da exclusão brasileira.
Se algum sociólogo se dispusesse a vasculhar a história da turma do Tigrão,
na Cidade de Deus, e dos “manos” de Batoré, na Febem, encontraria provavelmente
uma origem comum. Seus avós começaram a engordar, ainda nos
anos JK, uma imensa periferia que foi excluída dos benefícios da modernização.
Três ou quatro gerações de promessas frustradas e pauperização criaram
esses tipos brasileiros, diante dos quais a classe média se diverte ou se horroriza.
Na Febem ou fora dela, jovens miseráveis não têm mais a ilusão de que serão
incorporados à vida decente. Sobrevivendo no inferno, como diz Mano Brown,
não acreditam mais, como seus pais ou avós, que uma vida de privações e esforços
poderia ser recompensada por um futuro melhor, para seus filhos que fosse.
Que ninguém se iluda: caso perdido, a Febem deixou há muito de ser
encarada como problema, desde que quem ali morra antes de virar adulto
permaneça enjaulado. O Brasil já integrou seus tigrões. Basta ligar a TV.
Fernando de Barros e Silva, in Folha de S. Paulo, 19/3/01, p. A-2.

ANEXO - 5

TV alavanca romance de Eça de Queirós
Clássico da literatura portuguesa do século 19, “Os Maias” se beneficia da
adaptação para a televisão e entra em quinto lugar no ranking Datafolha.
Um clássico português do século 19, o romance “Os Maias”, aparece na
quinta colocação do ranking Datafolha dos livros mais vendidos em ficção. O
romance, que narra a decadência da aristocracia portuguesa do século 19, se
beneficiou da adaptação para a TV, que resultou na minissérie que está sendo
veiculada pela Globo. “Os Maias”, que tem edições da Nova Alexandria, L&PM
e Ediouro, é o mais vendido na lista só do Rio de Janeiro, embora não figure no
ranking em São Paulo. O primeiro lugar na capital paulista, e também no ranking
geral das duas cidades, em ficção, ficou com “Ninguém É de Ninguém”, de
Zibia Gasparetto.
Folha de S. Paulo, 4/3/01, Mais!, p. 22.

ANEXO - 6

3 QUESTÕES SOBRE EDUCAÇÃO E INTERNET

1. A internet beneficia ou prejudica a aprendizagem?
2. Em que medida a navegação na rede altera o conceito de aprendizagem?
3. Ela pode desbancar o ensino tradicional?
Valdemar Setzer responde
1. Depende. Se for criança ou jovem até uns 16 anos de idade, prejudica
muitíssimo, pois acelera indevidamente o desenvolvimento.
2. A educação sempre foi altamente contextual: um pai sempre examina
um livro antes de comprá-lo para seu filho; uma professora dá uma
aula tendo em vista o que ela deu em dias anteriores, a maturidade da
classe e, idealmente, de cada aluno etc. A internet é totalmente
descontextualizada. Crianças e jovens não têm capacidade para decidir o
que é adequado para eles, pois, se tiverem, estarão indevidamente se comportando
como adultos. TV, joguinhos eletrônicos e computador – e a internet
em particular – produzem aceleração altamente prejudicial: qualquer queima
de etapas em desenvolvimento e educação produz desequilíbrios fisiológicos
e psicológicos.
Além disso, o que se obtém por meio da internet são dados, eventualmente
interpretados como informação. Esta é quase irrelevante diante do que a educação deveria ser: desenvolvimento de capacidades sociais, artísticas e
científicas, principalmente por meio de vivências reais e não de abstrações
virtuais.
3. Sim, pois estamos num mundo verdadeiramente cão, onde as pessoas
– em grande parte devido aos meios eletrônicos – perderam a sensibilidade, a
intuição sobre o que deve ser uma educação sadia e equilibrada, adequada a
cada idade. Essa perda não foi, em geral, substituída por uma necessária
conceituação holística do que é o ser humano e a sua educação. Estamos na
“era do cosmético”; ele é mais importante do que o conteúdo.
TV, joguinho e computador são especialistas em cosméticos, atraindo pela
forma, não pelo conteúdo, pela virtualidade, não pela realidade. A atração
que o uso do computador na educação exerce nas crianças e jovens deveria
servir de alerta para o fato de que ela está falida, pois é um absurdo uma
máquina atrair mais do que um ser humano. A “escola do futuro” deveria ser
mais humana, e não mais tecnológica, pois esta vai produzir futuros adultos
menos humanos, comportando-se como animais e máquinas.
O nazismo será fichinha perto do que essas crianças e jovens
informatizados farão no futuro (e estão começando a fazer) e o sofrimento por
que passarão.
Rogério da Costa responde
1. Talvez o que mais prejudique o aprendizado seja a própria idéia que
temos de aprendizagem. Se acreditarmos que alguém possa aprender de modo
diverso do que é proposto pelo sistema professor-aluno, que é possível aprender
quando trocamos idéias com outras pessoas, que, ao relacionarmos informações
dispersas, estamos, de algum modo, produzindo conhecimento, então
a internet beneficia o aprendizado. Por outro lado, não há nada que prejudique
mais o aprendizado tradicional do que um professor despreparado ou mal
amparado materialmente. Esse problema a internet não irá resolver, mas poderá
ajudar a resolver.
2. A navegação na rede significa, basicamente, a possibilidade de explorarmos
de um modo não-linear universos distintos de informações e conhecimentos.
Ora, a idéia de “exploração”, por si só, já nos convida a refletir sobre a aprendizagem
de uma maneira distinta daquela que comumente entendemos: a “recepção”
do conhecimento exclusivamente por meio do professor. Porém a própria
atividade de exploração dos mundos virtuais requer um aprendizado! Isso nos leva
a crer que o ensino tradicional terá um papel importante a desempenhar nesse
aspecto: ensinar o aluno a ser ele próprio o explorador de seu universo de interesses.
As comunidades virtuais e o aprendizado coletivo que elas implicam constituem
outro aspecto fundamental da navegação em rede. Aprender a “aprender
coletivamente” talvez seja uma outra tarefa para o ensino fundamental.

3. Penso que não é produtivo estabelecermos uma concorrência entre o
ensino por meio de ambientes virtuais e o ensino tradicional. Ao contrário, eles
podem ser vistos como perfeitamente complementares. Cabe lembrar, no entanto,
que o fato de estarmos sendo provocados a pensar o ensino via internet, com
todo o desafio que isso significa e com toda a riqueza que ele nos promete, nos faz
refletir sobre a própria arquitetura do ensino tradicional que temos hoje. Isso nos
leva a crer que nossa relação com o ensino presencial se tornará cada vez mais
complexa, mais crítica e, esperamos, mais rica em mudanças e inovações.
In Folha de S. Paulo, 23/7/00, Mais!, p. 3. Valdemar Setzer é professor do Departamento de Ciência
da Computação da USP, autor de Introdução à rede internet e seu uso; Rogério da Costa é professor
de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, autor de Limiares do contemporâneo


ANEXO - 7

Texto 1
PELA INTERNET
Gilberto Gil
CRIAR MEU WEB SITE
FAZER MINHA HOME-PAGE
COM QUANTOS GIGABYTES
SE FAZ UMA JANGADA
UM BARCO QUE VELEJE
QUE VELEJE NESSE INFOMAR
QUE APROVEITE A VAZANTE DA INFOMARÉ
QUE LEVE UM ORIKI DO MEU VELHO ORIXÁ
AO PORTO DE UM DISQUETE DE UM MICRO EM TAIPÉ
UM BARCO QUE VELEJE NESSE INFORMAR
QUE APROVEITE A VAZANTE DA INFORMARÉ
QUE LEVE MEU E-MAIL ATÉ CALCUTÁ
DEPOIS DE UM HOT-LINK
NUM SITE DE HELSINQUE
PARA ABASTECER
EU QUERO ENTRAR NA REDE
PROMOVER UM DEBATE
JUNTAR VIA INTERNET
UM GRUPO DE TIETES DE CONNECTICUT
DE CONNECTICUT ACESSAR
O CHEFE DA MACMILÍCIA DE MILÃO
UM HACKER MAFIOSO ACABA DE SOLTAR
UM VÍRUS PARA ATACAR PROGRAMAS NO JAPÃO
EU QUERO ENTRAR NA REDE PRA CONTACTAR
OS LARES DO NEPAL, OS BARES DO GABÃO
QUE O CHEFE DA POLÍCIA CARIOCA AVISA PELO CELULAR
QUE LÁ NA PRAÇA ONZE TEM UM VIDEOPOKER PARA SE JOGAR

Texto 2
CÉREBRO ELETRÔNICO
Gilberto Gil
O CÉREBRO ELETRÔNICO FAZ TUDO
FAZ QUASE TUDO
QUASE TUDO
MAS ELE É MUDO
O CÉREBRO ELETRÔNICO COMANDA
MANDA E DESMANDA
ELE É QUEM MANDA
MAS ELE NÃO ANDA
SÓ EU POSSO PENSAR SE DEUS EXISTE
SÓ EU
SÓ EU POSSO CHORAR QUANDO ESTOU TRISTE
SÓ EU
EU CÁ COM MEUS BOTÕES DE CARNE E OSSO
HUM, HUM,
EU FALO E OUÇO
HUM, HUM,
EU PENSO E POSSO
EU POSSO DECIDIR SE VIVO OU MORRO
PORQUE
PORQUE SOU VIVO, VIVO PRA CACHORRO
E SEI
QUE CERÉBRO ELETRÔNICO NENHUM ME DÁ SOCORRO
EM MEU CAMINHO INEVITÁVEL PARA A MORTE
PORQUE SOU VIVO, AH, SOU MUITO VIVO
E SEI
QUE A MORTE É NOSSO IMPULSO PRIMITIVO
E SEI
QUE CERÉBRO NENHUM ME DÁ SOCORRO
COM SEUS BOTÕES DE FERRO E SEUS OLHOS DE VIDRO
Ambas as músicas in CD Gilberto Gil ao vivo, 1999.


ANEXO -8

CINEMA NOVO
Gilberto Gil e Caetano Veloso
O FILME QUIS DIZER “EU SOU O SAMBA”
A VOZ DO MORRO RASGOU A TELA DO CINEMA
E COMEÇARAM A SE CONFIGURAR
VISÕES DAS COISAS GRANDES E PEQUENAS
QUE NOS FORMARAM E ESTÃO A NOS FORMAR
TODAS E MUITAS: DEUS E O DIABO, VIDAS SECAS. OS FUZIS.
OS CAFAJESTES, O PADRE E A MOÇA. A GRANDE FEIRA, O DESAFIO
OUTRAS CONVERSAS, OUTRAS CONVERSAS SOBRE OS JEITOS DO BRASIL
OUTRAS CONVERSAS SOBRE OS JEITOS DO BRASIL
A BOSSA NOVA PASSOU NA PROVA
NOS SALVOU NA DIMENSÃO DA ETERNIDADE
PORÉM AQUI EMBAIXO “A VIDA”. MERA “METADE DE NADA”
NEM MORRIA NEM ENFRENTAVA O PROBLEMA
PEDIA SOLUÇÕES E EXPLICAÇÕES
E FOI POR ISSO QUE AS IMAGENS DO PAÍS DESSE CINEMA
ENTRARAM NAS PALAVRAS DAS CANÇÕES
PRIMEIRO FORAM AQUELAS QUE EXPLICAVAM
E A MÚSICA PARAVA PRA PENSAR
MAS ERA TÃO BONITO QUE PARASSE
QUE A GENTE NEM QUERIA RECLAMAR
DEPOIS FORAM AS IMAGENS QUE ASSOMBRAVAM
E OUTRAS PALAVRAS JÁ QUERIAM SE CANTAR
DE ORDEM DE DESORDEM DE LOUCURA
O DE ALMA À MEIA-NOITE E DE INDÚSTRIA
E A TERRA ENTROU EM TRANSE Ê
NO SERTÃO DE IPANEMA
EM TRANSE Ê, NO MAR DE MONTE SANTO
E A LUZ DO NOSSO CANTO. E AS VOZES DO POEMA
NECESSITARAM TRANSFORMAR-SE TANTO
QUE O SAMBA QUIS DIZER, O SAMBA QUIS DIZER: EU SOU CINEMA
AÍ O ANJO NASCEU, VEIO O BANDIDO METERORANGO,
HITLER TERCEIRO MUNDO. SEM ESSA ARANHA. FOME DE AMOR
E O FILME DISSE: EU QUERO SER POEMA
OU MAIS: QUERO SER FILME E FILME-FILME
ACOSSADO NO LIMITE DA GARGANTA DO DIABO
VOLTAR À ATLÂNTIDA E ULTRAPASSAR O ECLIPSE
MATAR O OVO E VER A VERA CRUZ
E O SAMBA AGORA DIZ: EU SOU A LUZ
DA LIRA DO DELÍRIO. DA ALFORRIA DE XICA
DE TODA A NUDEZ DE ÍNDIA DE FLOR DE MACABÉIA, DE ASA BRANCA
MEU NOME É STELINHA, É INOCÊNCIA
MEU NOME É ORSON ANTÔNIO VIEIRA CONSELHEIRO DE PIXOTE
SUPER OUTRO
QUERO SER VELHO, DE NOVO ETERNO, QUERO SER NOVO DE NOVO
QUERO SER GANGA BRUTA E CLARA GEMA
EU SOU O SAMBA. VIVA O CINEMA – VIVA O CINEMA NOVO.
CD Tropicália 2, 1994.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Cultura de massa ou indústria cultural

Entre os autores preocupados em definir a indústria cultural ou cultura de
massa e compreender o seu papel na sociedade atual, existem posições diferentes
e até opostas. De maneira breve, examinemos algumas visões sobre a questão.
O termo indústria cultural foi criado por Theodor Adorno (1903-1969) e
Max Horkheimer (1895-1973), membros de um grupo de filósofos conhecido
como Escola de Frankfurt. Ao fazerem a análise da atuação dos meios de
comunicação de massa (que a partir de agora serão chamados pela sigla mdcm),
esses autores concluíram que eles funcionavam como uma verdadeira indústria
de produtos culturais, visando exclusivamente ao consumo. Conforme Adorno,
a indústria cultural vende mercadorias, mas, mais do que isso, vende imagens
do mundo e faz propaganda deste mundo tal qual ele é e para que ele
assim permaneça.
Segundo os dois autores, a indústria cultural pretenderia integrar os consumidores
das mercadorias culturais, agindo como uma ponte nociva entre a
cultura erudita e a popular. Nociva porque retiraria a seriedade da primeira e a
autenticidade da segunda. Adorno e Horkheimer vêem a indústria cultural como
qualquer indústria, organizada em função de um público-massa (abstrato e
homogeneizado) e baseada nos princípios da lucratividade.
Poderíamos pensar, a partir do que os autores indicam, que a indústria
cultural venderia mercadorias culturais como pasta de dentes ou automóveis,
e o público receberia esses “produtos” sem saber diferenciá-los ou sem questionar
seu conteúdo. Assim, após uma sinfonia de Beethoven, uma estação de
rádio poderia veicular o anúncio de um restaurante e, depois dele, noticiar um
golpe de Estado ou terremoto, sem nenhuma profundidade, sem nenhuma
discussão. Nesse sentido, é preciso observar como essa sucessão de música,
propaganda e notícia ilustra o caráter fragmentário dos mdcm, principalmente
o rádio e a televisão (esta, por sinal, profundamente criticada por Adorno).
Os meios tecnológicos tornaram possível reproduzir obras de arte em escala
industrial. Para os autores, essa produção em série (por exemplo, os discos
de música clássica, as reproduções de pinturas, a música erudita como pano
de fundo de filmes de cinema) não democratizou a arte. Simplesmente, banalizou-
a, descaracterizou-a, fazendo com que o público perdesse o senso crítico
e se tornasse um consumidor passivo de todas as mercadorias anunciadas pelos
mdcm. Nesse caso, o fato de um operário assobiar, durante o seu trabalho,
um trecho da ópera que ouviu no rádio não significaria que ele estaria compreendendo
a profundidade daquela obra de arte, mas apenas que ele a memorizou,
como faria com qualquer canção sertaneja, romântica, ou mesmo um
jingle que ouvisse no mesmo rádio.
Para Adorno, a indústria cultural tem como único objetivo a dependência
e a alienação dos homens. Ao maquiar o mundo nos anúncios que veicula, ela
acaba seduzindo as massas para o consumo das mercadorias culturais, a fim de que elas se esqueçam da exploração que sofrem nas relações de produção.
A indústria cultural estimularia, portanto, o imobilismo.
Ao contrário de Adorno e Horkheimer, Marshall McLuhan (1911-1980)
via a atuação dos mdcm de maneira otimista. Estudando principalmente a televisão,
o autor acreditava que ela poderia aproximar os homens, diminuindo
as distâncias não apenas territoriais como sociais entre eles. O mundo iria transformar-se, então, numa espécie de “aldeia global”, expressão que acabou ficando
clássica entre os teóricos da comunicação.
O crítico Umberto Eco, por sua vez, faz uma distinção polêmica entre os
autores dedicados ao estudo da indústria cultural. Segundo ele, esses autores
dividem-se entre “apocalípticos” (aqueles que criticam os meios de comunicação
de massa) e “integrados” (aqueles que os elogiam). Entre os motivos para
criticar os mdcm, segundo os “apocalípticos”, estariam:
· a veiculação que eles realizam de uma cultura homogênea (que
desconsidera diferenças culturais e padroniza o público);
· o seu desestímulo à sensibilidade;
· o estímulo publicitário (criando, junto ao público, novas necessidades de
consumo); a sua definição como simples lazer e entretenimento, desestimulando o
público a pensar, tornando-o passivo e conformista.
Nesse sentido, os mdcm seriam usados para fins de controle e manutenção
da sociedade capitalista.
Entre os motivos para elogiar os mdcm, apontados pelos “integrados”,
estariam:
· serem os mdcm a única fonte de informação possível a uma parcela da
população que sempre esteve distante das informações;
· as informações veiculadas por eles poderem contribuir para a própria
formação intelectual do público;
· a padronização de gosto gerada por eles funcionar como um elemento
unificador das sensibilidades dos diferentes grupos.
Nesse sentido, os mdcm não seriam característicos apenas da sociedade
capitalista, mas de toda sociedade democrática.
Eco irá criticar as duas concepções. Os “apocalípticos” estariam equivocados
por considerarem a cultura de massa ruim simplesmente por seu caráter
industrial. Para Eco, não se pode ignorar que a sociedade atual é industrial e
que as questões culturais têm que ser pensadas a partir dessa constatação. Os
“integrados”, por sua vez, estariam errados por esquecerem que normalmente
a cultura de massa é produzida por grupos de poder econômico com fins
lucrativos, o que significa a tentativa de manutenção dos interesses desses
grupos através dos próprios mdcm. Além disso, não é pelo fato de veicular
produtos culturais que a cultura de massa deva ser considerada naturalmente
boa, como querem os “integrados”.
493
Anexo
Eco acredita que não se pode pensar a sociedade moderna sem os mdcm.
Nesse sentido, sua preocupação é descobrir que tipo de ação cultural deve ser
estimulado para que os mdcm realmente veiculem valores culturais.
Nesse sentido, o papel dos intelectuais será fundamental, pois eles é que
irão fiscalizar e exigir que isso aconteça.
Outro autor também ligado à Escola de Frankfurt, mas com uma concepção
diferente do papel da indústria cultural, é Walter Benjamin (1886-1940).
Para ele, a revolução tecnológica do final do século XIX e início do século XX
não acabou com a cultura erudita, como pensavam Adorno e Horkheimer, mas
alterou o papel da arte e da cultura. Os mdcm e suas novas formas de produção
cultural propiciaram mudanças na percepção e na assimilação do público
consumidor, podendo, inclusive, gerar novas formas de mobilização e contestação
por parte desse público.
Para Benjamin, a possibilidade de reprodução técnica das obras de arte
retirou delas o seu caráter único e mágico (o que ele chama de sua “aura”).
Em compensação, possibilitou que elas saíssem dos palácios e museus e fossem
conhecidas por um número infinito de pessoas. Por exemplo, a reprodução
fotográfica permitiu que qualquer pessoa pudesse ter em sua sala as clássicas
Monalisa e Santa ceia, de Leonardo da Vinci; a reprodução fonográfica
fez com que muito mais pessoas pudessem escutar (e quantas vezes quisessem)
uma sinfonia de Mozart.
O impacto que a indústria cultural moderna pode provocar no público
consumidor não seria, portanto, necessariamente negativo, podendo, ao contrário,
contribuir para a emancipação desse público e para a melhoria da sociedade,
uma vez que ampliaria o seu horizonte de conhecimento.
Muitos críticos consideram a visão de Adorno e Horkheimer sobre a indústria
cultural conservadora. Segundo eles, a posição desses autores, ao dizerem
que a indústria cultural banalizaria a cultura erudita (que eles denominavam
“alta cultura”), seria de valorizar a cultura burguesa. E não apenas isso,
seria também de depreciar a cultura popular, que, segundo eles, ficaria ainda
mais simplificada no âmbito da indústria cultural, e a própria capacidade crítica
do público, considerado mero consumidor de mercadorias culturais, produzidas
industrialmente.
Essas diferentes visões sobre a indústria cultural, expostas de maneira
simplificada, poderão servir como elementos para refletirmos sobre a questão
da indústria cultural no Brasil.
Nelson Dácio Tomazi, Iniciação à Sociologia, São Paulo, Atual, 1993

O surgimento da Sociologia

Everaldo Lorensetti


Você é um privilegiado!
eitor: – Como assim, privilegiado?
O livro: – É, privilegiado! Você é um
deles!
Na sociedade, há pessoas privilegiadas.
Um deles, por exemplo, pode
ser aquele que tem o poder de
governar e de conduzir os rumos da
sociedade, o que muitas vezes pode
não ser da maneira mais justa para
todos. Outro exemplo...
Leitor: – Um outro...?
O livro: – Você mesmo é um, caro leitor!
Leitor: – Mas, eu?! Como?
O livro: – Simples! Seu privilégio está no fato do que você vai
adquirir agora: conhecimento! Você poderá avançar
no entendimento de como funciona a sociedade em
que você vive, conhecer como trabalham os demais
privilegiados (a elite social) e aumentar sua autonomia
de reflexão e de ação diante dos fatos que lhe cercam.
Sigamos adiante?
Mas o que é essa AUTONOMIA de que estamos falando?
Vamos lá! Vamos descobrir! Você vai entender o que estamos dizendo,
passo a passo.
Essa autonomia é quanto à sua maneira de pensar e de agir frente a
diversas situações. Muitas pessoas não sabem (e não se preocupam em
saber) como e por que determinadas coisas mexem com suas vidas.
Vamos pensar num exemplo bem simples para você entender: você
já viu uma TV que não “pega” direito? O que pode ser feito para se
resolver o problema do sinal?
Colocar palha-de-aço na antena resolveria?
Essa atitude, de pôr a palha-de-aço na antena, falando de tempos
passados, era algo muito mais comum do que hoje com as antenas parabólicas
e TVs a cabo, o que não significa que ninguém mais o faça.
Mas a palha-de-aço pode até resolver o problema, consideravelmente.
Outras vezes, porém, ela não será suficiente para acabar com o
defeito. Dependendo do sinal que a TV esteja recebendo.
O que seria a palha-de-aço?
Palha-de-aço = uma espécie de Senso Comum.
No caso da TV, um técnico em eletrônica resolveria melhor o problema
do sinal porque ele tem um conhecimento mais apurado daquilo
que opera o funcionamento da televisão. Provavelmente ele iria dar
uma boa gargalhada ao ver o “Bombril” pendurado na ponta da antena,
pois ele sabe que aquilo pode ser apenas um “remendo no rasgo”,
ainda que em alguns casos resolva, entende?
Resumindo: Então, o que seria um Senso Comum?
Poderíamos dizer que é uma resposta ou solução simples para o
cotidiano, geralmente pouco elaborada e sem um conhecimento mais
profundo, diga-se, científico.
O teólogo brasileiro e Doutor em Filosofia, Rubem Alves, em seu livro
Filosofia da Ciência, considera o senso comum como sendo aquilo
que não é ciência. De outra maneira, seria dizer que o Bombril na antena
da TV não é algo científico, mas sim um “eu acho que funciona”
para o dia-a-dia das pessoas.
Mas existe uma lógica em pôr a palha-de-aço na antena. As pessoas
só não sabem qual é. E é por esse motivo, também, que Rubem Alves
diz que a ciência, na verdade, é um refinamento, ou melhoramento,
do senso comum.
O senso comum e a ciência nos dão respostas, ou inventam soluções
práticas para nossos problemas. A diferença é que a ciência é um
conhecimento mais elaborado.
“Eu acho que...” Fique sabendo!
Muitas vezes quando alguém começar
uma resposta com as palavras
“eu acho que...”, tal resposta pode
não chegar no centro real do problema
a ser entendido ou resolvido. O
que não significa, porém, que ela deva
ser rejeitada. Ela só precisa ser refinada.
Por exemplo, se alguém nos perguntasse
o motivo que leva a economia
de um país oscilar, nós poderíamos
dar uma resposta certeira, com
demonstrações, inclusive, mas também
poderíamos dizer apenas: “eu
acho que...”.
A exemplo da economia, existem
muitas outras coisas que acontecem
na sociedade que nos atingem diretamente.
E para todas essas coisas seria
muito bom que tivéssemos curiosidade
para saber se aquilo que é mostrado
é realmente como é, entende?
E a Sociologia? Como vai aparecer
nessa conversa?
Para muitas pessoas, passar debaixo de uma escada traz azar. Isso também pode ser um exemplo de senso comum.

Contribuindo para que possamos entender um pouco mais o lugar onde
vivemos!
Veja, como já falamos, o senso comum não deve ser rejeitado.
O que estamos propondo é que você pode ir além desse conhecimento
comum, neste caso, sobre a sociedade.
Uma outra coisa que deve ser desmitificada é o termo cientista.
Confirmamos o pensamento de Rubem Alves quando diz que um cientista
não é uma pessoa que pensa melhor do que os outros. Rubem Alves
nos fala que a tarefa de refletir e de entender os porquês das coisas
cabe a todos nós, e que a idéia de que não precisamos pensar, porque
existem pessoas “melhores” para isto, é furada.
Avançar um pouco mais em relação a um conhecimento elaborado e investigativo vai lhe trazer um entendimento mais claro sobre como
funciona a sociedade, dentre outras coisas.
Além do fato de que você terá maior autonomia para CONCORDAR
OU DISCORDAR POR SI PRÓPRIO sobre as questões que você
vive na sociedade.
Essa é a independência que queremos que você tenha: A DE REFLEXÃO.

E o que é ser alienado?
Veja: se não tivermos nossa independência de pensamento
e ação, ou seja, se não conseguimos refletir sobre
aquilo que vemos e ouvimos, ou se concordamos com tudo
o que acontece, então podemos estar vivendo de forma
alienada.
Segundo a filósofa brasileira Marilena Chauí, a alienação
acontece quando o homem não se vê como sujeito (criador)
da história e, nela, capaz de produzir obras.
Para o homem alienado, e segundo esta mesma visão, a
história e as obras produzidas nela são fatos estranhos e externos.
E, sendo estranhos, tal homem não os pode controlar, ficando
numa posição de dominado. Já o conhecimento pode nos fazer transformadores
da história, e não apenas espectadores dela.
Mais à frente retomaremos essa discussão sobre a alienação e a existência
de elites e o faremos com mais recursos para a nossa reflexão.

Conhecer e entender
(sobre a Sociologia) é preciso!
A Sociologia não é a redentora ou solucionadora dos males sociais,
ou dos problemas intelectuais das pessoas. Ela surge como uma ciência
que vai fornecer uma nova visão sobre a sociedade, que não é absoluta,
ou a única a demonstrar a “verdade”.
Sua contribuição está no fato de nos dar referenciais para refletirmos
sobre as sociedades.

A ”Gênesis Sociológica”:
É importante...
Nesse início de trabalho, buscaremos conhecer como a Sociologia
surgiu, para depois sabermos como é que ela pode nos ajudar a entender
a sociedade, bem como os problemas levantados pela atividade
acima. Vamos fazer um passeio pela história para encontrarmos suas
bases. Acompanhe:

Como tudo começou!
Apesar da ciência sociológica ser considerada nova, pois ela se consolidou por volta do século XIX, a angústia de se entender as sociedades,
por sua vez, não é tão nova assim. Se olharmos para a Grécia Antiga, vamos ver que lá já havia o desejo de se entender a sociedade. No século V a.C, havia uma corrente filosófica, chamada sofista, que começava a dar mais atenção para os problemas sociais e políticos da época. Porém, não foram os gregos os criadores da Sociologia. Mas foram os gregos que iniciaram o pensamento crítico filosófico. Eles criaram a Filosofia (que significa amor ao conhecimento) e que, por sua vez, foi um impulso para o surgimento daquilo que chamamos, hoje, de ciência, a qual se consolidaria a partir dos séculos XVI e XVII, sendo uma forma de interpretação dos acontecimentos da sociedade mais distanciada das explicações míticas. Foram com os filósofos gregos Platão (427-347 a.C) e Aristóteles (384-322 a.C), que surgiram os primeiros passos dos trabalhos mais reflexivos sobre a sociedade. Platão foi defensor de uma concepção idealista e acreditava que o aspecto material do mundo seria um tipo de fruto imperfeito das idéias universais, as quais existem por si mesmas. Aristóteles já mencionava que o homem era um ser que, necessariamente, nasce para
estar vivendo em conjunto, isto é, em sociedade.
No seu livro chamado Política, no qual consta um estudo dos diferentes sistemas de governo existentes, percebe se o seu interesse em entender a sociedade.

na Idade Média...
Séculos mais tarde, no período chamado de Idade Média (que vai do século V ao XV, mais exatamente entre os anos 476 a 1453 a.C.), houve, segundo os renascentistas (que vamos conhecer mais à frente), um período de “trevas” quanto à maneira de ver o mundo. Segundo eles, havia um prevalecer da fé, onde o campo mítico e religioso tendia a ser a explicação mais viável para o mundo. Na Europa Medieval, esse predomínio foi pela igreja Católica. Tal predomínio da fé, de certo modo, e segundo os humanistas renascentistas, asfixiava as tentativas de explicações mais especulativas e racionais (científicas) sobre a sociedade. Não cumprir uma regra ou lei estabelecida pela sociedade, poderia ser entendido como um pecado, tamanha era a mistura entre a vida cotidiana e a esfera sobrenatural.
É claro que se olharmos a Idade Média somente pela ótica dos renascentistas ela pode ficar com uma “cara meio tenebrosa”. Na verdade, ela também foi um período muito rico para a história da humanidade, importante, inclusive, para a formação da nossa casa, o mundo ocidental. Vale a pena conhecermos um pouco mais sobre essa história. E, na continuidade da história...
Tudo caminhava para o uso da razão O predomínio da fé durou até pelo menos o século XV. Mas já no século XIV começava a acontecer uma renovação cultural. Era o início do período conhecido por Renascimento.
Os renascentistas, com base naquilo que os gregos começaram, isto é, a questionar o mundo de maneira reflexiva (como já contamos anteriormente),
rejeitavam tudo aquilo que seria parte da cultura medieval, presa aos moldes da igreja, no caso, a Católica. O renascimento espalhou-se por muitas partes da Europa e influenciava a arte, a ciência, a literatura e a filosofia, defendendo, sempre, o espírito crítico. Nesse tempo, começaram a aparecer homens que, de forma mais realista, começavam a investigar a sociedade. A exemplo disso temos Nicolau Maquiavel (1469-1527) que, em sua obra intitulada de O Príncipe, faz uma espécie de manual de guerra para Lorenzode Médici. Ali comenta como o governante pode manipular os meios
para a finalidade de conquistar e manter o poder em suas mãos.
Obras como esta davam um novo olhar para a sociedade, o olhar
de que pela razão os homens poderiam dominar a sociedade, longe
das influências divinas.

Era a doutrina do antropocentrismo ganhando força. O homem
passava a ser visto como o centro de tudo, inclusive do poder de inventar
e transformar o mundo pelas suas ações.
Além de Maquiavel, outros autores renascentistas, como Francis Bacon
(1561-1626), filósofo e criador do método científico conhecido por
experimental, ajudavam a dar impulso aos tempos de domínio da ciência
que se iniciavam.
Não perdendo de vista...
Estamos contando tudo isso para que você perceba que nem sempre as pessoas puderam contar com a ciência para entender o mundo, sobretudo o social, que é o queremos compreender. Dessa maneira, muitas pessoas, no passado, ficaram “presas” às explicações que poderiam ser falsas sobre a realidade, como é o caso das explicações míticas.

O Iluminismo

Já no século XVIII, houve um momento, na Europa, chamado de Iluminismo, que começou na Inglaterra e França, mas que posteriormente espalhou-se por todo o continente, em que a idéia de se valorizar a ciência e a racionalidade sobre a vida da sociedade tornou-se ainda mais forte.
Uma característica das idéias do Iluminismo era o combate ao Estado absoluto, ou absolutismo, que começou a surgir na Europa ainda no final da Idade Média, no século XV, em que o rei concentrava todo o poder em suas mãos e governava sendo considerado um representante divino na terra, uma voz de Deus, a qual até a igreja, não raramente, se sujeitava.
Com a ciência ganhando força, era, digamos, inviável o fato de voltar
a pensar a vida e a organização social por vias que não fossem científicas.
Como por exemplo, imaginar os governantes como sendo representantes
sobrenaturais. Nesse período, a continuada consolidação da reflexão sistemática sobre a sociedade foi ajudada por autores como Voltaire (1694-1778), filósofo que defendia a razão e combatia o fanatismo religioso; Jean- Jacques Rousseau (1712-1778), que estudou sobre as causas das desigualdades sociais e defendia a democracia; Montesquieu (1689-1755),
que criticava o absolutismo, e defendia a criação de poderes separados
(legislativo, judiciários e executivo), os quais dariam maior equilíbrio
ao Estado, uma vez que não haveria centralidade de poder na mão do governante.
Portanto, com a contribuição Iluminista...
A partir das teorias sobre a sociedade que no período Iluminista surgiram, é que começa a ser impulsionada, ou preparada, a idéia da existência de uma ciência que pudesse ajudar a interpretar os movimentos da própria sociedade.

CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO E A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL!
Estamos mudando de assunto?
Mudando em parte, porém não estamos deixando de falar do surgimento
da Sociologia. Há outros elementos que a motivaram surgir.
As transformações na sociedade européia não estavam ocorrendo somente no campo das idéias, como era o caso da consolidação da ciência como ferramenta de interpretação do mundo, que vimos até aqui.
A também consolidação do sistema capitalista, culminada pela Revolução
Industrial que ocorreu em meados do século XVIII, na Inglaterra, gerava grandes alterações no estilo de vida das pessoas, sobretudo nas das que viviam no campo ou do artesanato. Estes temas despertavam o interesse de críticos da época.
Dessa maneira, quando a Sociologia iniciou os seus trabalhos, ela o fez com base em pensadores que viram os problemas sociais ocasionados a partir da crise gerada pelos fatos acima mencionados.
Acompanhe:
Recorrendo à História para entendermos...
Podemos dizer que o início do sistema capitalista se deu na chamada Baixa Idade Média, entre os séculos IX e XV, na Europa Ocidental.
A partir do século XI, com as “cruzadas” realizadas pela Igreja Católica,
para conquistar Jerusalém que estava dominada pelos muçulmanos, um canal de circulação de riquezas na Europa foi aberto. O contato cultural e o comércio do ocidente com o oriente europeu foram retomados via Mar Mediterrâneo. Com a movimentação de pessoas e riquezas houve, na Europa Ocidental, o surgimento de núcleos urbanos, conhecidos por burgos. Destes, ressurgiram as cidades, pois existiam poucas naquele tempo. As chamadas corporações de ofício, que eram uma espécie de associação que organizava as atividades artesanais para ter acordo entre os preços de venda e qualidade do produto, por exemplo, começaram a aparecer a fim de regular o trabalho dos artesões que vinham para as cidades exercer sua profissão. Aqui vemos que a idéia do lucro se fortalecia.

Mais tarde, os europeus...
...começaram a explorar o comércio em termos mundiais, principalmente
depois dos séculos XV e XVI e das chamadas Grandes Navegações. Por exemplo, com o descobrimento da América, muita riqueza daqui era levada à Europa para a criação de mercadorias que seriam vendidas nesse mercado mundial que estava surgindo. A idéia de uma produção em série de mercadorias começava a surgir.
As antigas corporações de ofícios foram transformadas pelos comerciantes
da época em manufatura. O trabalho manufatureiro acontecia com vários artesãos, em locais separados e dirigidos por um comerciante que dava a eles a matéria-prima e as ferramentas. No final do trabalho encomendado, os artesões recebiam um pagamento acertado com o comerciante.
Mais à frente ainda, os comerciantes (futuros empresários capitalistas)
pensaram que seria melhor reunir todos esses artesãos num só lugar, pois assim poderiam ver o que eles estavam produzindo. Além de cuidar da qualidade do produto, o controle sobre a matéria-prima e ritmo da produção poderia ser maior. Foi então que surgiu a idéia da fábrica...
Um lugar com uma produção mais organizada, com a divisão de funções, onde o artesão passava a operar apenas parte da produção. Desse ponto, para a implantação das máquinas movidas a vapor, restava
somente o tempo da invenção das mesmas. Quando o inventor escocês James Watt (1736-1819) conseguiu patentear a máquina a vapor, em abril de 1784, ela veio dar grande impulso à industrialização que se instalava, aumentando a produção, diminuindo os gastos com mão-de-obra e aumentando o acúmulo de capital.

Veja o quadro que se montava...
O sistema feudal da Europa Ocidental, estava sendo superado. Ele não conseguiria suprir as necessidades dos novos mercados que se abriam. O sistema capitalista, com base na propriedade privada e no lucro, isto é, na acumulação de capital, estava sendo consolidado.
A partir da Revolução Industrial (século XVIII), as cidades da Europa
Ocidental começavam a se transformar em grandes centros urbanos comerciais e, posteriormente, industriais. Muitas delas “inchadas” por desempregados. O estilo de vida das pessoas estava se transformando – para alguns de forma violenta e radical – como era o caso de muitos camponeses que eram expulsos pelos senhores das terras que as cercavam para criar ovelhas e fornecer lã às fábricas de tecidos.
Já no caso dos artesãos, esses “perdiam” sua qualificação profissional e o controle sobre o que produziam, ou seja, de profissionais, passavam a “não ter profissão”, pois a indústria era quem ditava que tipo de profissional precisava ser. Não importava se fossem grandes artesãos, só precisariam aprender a operar a máquina da fábrica. Se fosse Hoje, usaríamos o termo aprender a “apertar botões”. Dessa maneira, como não tinham capital para ter uma produção autônoma e competir com a fábrica, submetiam-se ao trabalho assalariado.

Sistema feudal:
Sistema social que existiu durante a Idade Média. Com o
desaparecimento das cidades, o comércio também desaparecia.
As bases econômicas se centraram no campo, nos feudos. Os feudos eram
grandes áreas de terras pertencentes a um senhor. Dentro deles havia as colônias de servos que lavravam a terra. Parte da produção era destinada
ao senhor da terra, e parte era para os servos.

Novas e grandes invenções estavam sendo realizadas no campo tecnológico, como as próprias máquinas a vapor das indústrias. O comércio mundial estava aumentando cada vez mais. O mundo estava “encolhendo”, em termos de fronteiras comerciais e ficando “europeizado”. E em meio a isto, duas classes distintas emergiam: a composta pelos empresários e banqueiros, chamada de classe burguesa, e a classe assalariada, ou proletária.
A classe burguesa é aquela que ao longo do tempo veio acumulando
capital com o comércio e reteve os meios de produção em suas mãos, isto é, as ferramentas, os equipamentos fabris, o espaço da fábrica, etc., bem como o poder político. Já a classe proletária, sem capital e expropriada dos meios de produção, tornava-se fornecedora de mão-de-obra aos donos das fábricas.
Agora perceba comigo:
É em meio a todas essas transformações que ocorriam na Europa Ocidental, isto é, pela consolidação do sistema capitalista, a valorização da ciência contrapondo as explicações míticas sobre o mundo, a abertura de mercados mundiais, o surgimento de novas classes na sociedade e a crise da classe proletária versus enriquecimento da classe burguesa, é que a Sociologia começa a ser pensada como sendo uma ciência para dar respostas mais elaboradas sobre o caos social. A Sociologia e suas teorias, as quais vamos ver a seguir, se constituem ferramentas de reflexão sobre a sociedade industrial e científica que surgia. Vamos ver como elas refletem para entendermos os problemas sociais e ajudar a encontrar soluções para os mesmos.

Burguesia:
As pessoas que moravam
nos núcleos urbanos (burgos),
eram identificadas como
sendo os burgueses. Mas
com o passar dos tempos,
essa denominação ficou apenas
para os que haviam enriquecido
com o comércio, sobretudo
os comerciantes e
banqueiros

Referências:
ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. São Paulo: Ars Poética, 1996.
AZEVED , Fernando de. Princípios de Sociologia: pequena introdução ao estudo
da sociologia geral. 11ª ed. – São Paulo: Duas Cidades, 1973.
CASTRO, Ana Maria de, DIAS, Edmundo Fernandes. Contexto histórico do
aparecimento da sociologia. In.: Introdução ao pensamento sociológico. São
Paulo: Centauro, 2001.
CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1994.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1998.